O varão repeliu a mulher do templo e da arena pública
Deus não é homem. Do memo modo a Religião e o Estado não se deixam reduzir a um domínio do homem! No Estado e nas instituições não há equilíbrio entre os valores femininos e os valores masculinos.
Sintomaticamente, as línguas latinas só têm a palavra homem para designarem o complexo varão e mulher. Esta pobreza manifesta o espírito cultural unilateral subjacente, em prejuízo da mulher e da sociedade. O mesmo défice e violência se observam hoje nas campanhas sexistas e instrumentalizadoras do homem e da mulher para fins ideológicos e económicos. O problema porém está no modelo dea sociedade vigente e mentalidade imanente. Uma sociedade de características machistas procura, com certo sucesso, assimilar a feminidade sem ter de abdicar do seu específico másculo. As sociedades manifestam o seu carácter no espírito religioso que as fundamenta.
O homem / mulher é a imagem de Deus. O Génesis 1,27 testemunha-o claramente: “Deus criou o homem à Sua semelhança, criou-o à imagem de Deus; Ele o criou homem (masculino) e mulher (feminino). Já o profeta Oseias se insurgia, no Antigo Testamento, contra as tendências patriarcais de masculinização de Deus e da sociedade. Em Oseias, Deus afirma: “Eu sou Deus, não homem”. (Hoje o mesmo profeta protestaria contra o espírito do tempo que tenta masculinizar a mulher reduzindo-a a objecto de sexo e fazer dela um ser à imagem do homem). A cópia original de Deus é homem e mulher, o resto é falsificação. O mesmo se poderia dizer da filosofia substrato às civilizações existentes.
Nos tempos mais antigos o masculino e o feminino convivia no templo. Com o tempo a mulher é expulsa da esfera do templo e da sociedade. A tendência hegemónica do homem e o projecto de elaborar uma sociedade de timbre masculino levou o varão a desalojar a mulher do templo, privatizando-a. A sua capacidade subordinadora e guerreira afirmaram-se mediante uma estratégia dialéctica.
A feminidade no templo era para os homens como a mulher árabe para os muçulmanos: um elemento de distracção ou de perigo emocional. Daí a necessidade de se apresentar em público uma imagem de Deus másculo. Os árabes não só afastam a feminidade do templo como a escondem debaixo do lenço, do burel. Os hebreus contentam-se com a apresentação de Deus sob uma forma masculina excomungando a feminidade e o erotismo do templo. O espírito grego, apadrinhado pela civilizacao judaico-cristã deu depois continuidade à repressão da feminidade. A cultura árabe ainda acentua mais a repressão do feminino sem perder um certo sensualismo. Onde o primado da guerra e da violência surgem, aí se afirmam as qualidades masculinas contra as femininas. Poderíamos dizer que há uma correspondência directa entre agressividade e disposição feminina na sociedade.
Santo Agostinho refere-se às dimensões de Deus pai e mãe. Deus é pai “porque funda, porque chama, porque ordena e porque domina”. Deus é mãe “porque aquece, porque alimenta, porque abarca”. A Igreja Católica procurou integrar a feminidade no culto a Maria. A feminidade divina venerada em Maria, não deve porém servir para a reprimir na mulher concreta. O mundo sensual continua, de maneira já muito reduzido, na Mãe de Deus mas muito presente em sectores restritos como se pode ver na iconografia. Assim, a espiritualidade popular que sempre se concentrou em redor do concreto, resiste contra uma tentativa intelectualizadora de abordagem de Deus distante da dimensão concreta das experiências humanas. Nas devoções marianas de carácter popular, encontra-se mais compreensão também para o imediato, uma contraposição à intelectualidade religiosa de acentuação masculina.
Em tempos de crise tornam-se mais relevantes os valores masculinos em desvantagem dos femininos. A crise de sentido em que hoje se vive é muito oportuna. Vai sendo tempo de homem e mulher concelebrarem juntos o mistério da vida na congruência dos sexos para se possibilitar um progresso real da humanidade baseado no equilibrio dos valores masculinos e femininos (duma nova consciência de ser e estar)..
A imagem de Deus encontra-se em contínua interdependência com a imagem homem/mulher no desenrolar da história. O factor do tempo e da consciência humana implica contínuos retoques no modelo e na imagem, o que urge hoje é um salto qualitativo. Também é uma constante histórica que a superabundância nas instituições humanas civis e religiosas se alimentam do que tiram aos membros. Essa privação deveria ser devolvida de modo aperfeiçoado ao povo. A Igreja Católica, lugar primeiro da globalização deveria empenhar-se na “feminização” da sociedade, no sentido da frase do génesis e do ideal de Cristo – Homem/Mulher e não apenas barão. Isto implica uma nova maneira de ser e estar na vida social, política, económica e religiosa. Implica uma visão aperspectiva (perspectiva do todo e de cada parte), no sentido trinitário da realidade do “ser”.
Na nova era a construir, o Estado e as instituições não poderão engordar-se nem continuar a nutrir os que se servem deles à custa da falta de conhecimento do povo e dos seus males. Precisa-se o Homem-Mulher-forte cuja riqueza e honra esteja ao serviço duma nova sociedade humana. Só uma consciência de características mais feminina possibilitará a saída do fracasso dum modelo de sociedade que se vai afirmando, de crise em crise, na luta do homem contra o homem. A polarização dos modelos de sociedade até hoje praticados não será viável numa sociedade de consciências individuais cada vez menos dialécticas e mais integrais. O início da era da “revolução” feminina torna-se óbvio.
António da Cunha Duarte Justo