Refugiados da vida entram no relvado
O campeonato do Mundo na Alemanha atrairá 3 milhões de visitantes a 64 jogos entre as 32 nações participantes. O resto fica atado aos ecrãs da TV, à Rádio e aos jornais.
Como na religião também no futebol há fiéis, devotos, fanáticos, indiferentes e também os heréticos, os agnósticos, e mesmo os ateus da bola. Não faltam também os comerciantes de artigos devocionais e os padres que se preocupam com a consciência da nação.
Como na igreja, a alma do futebol une as gerações e as camadas sociais; pequenos e grandes sentem-se unidos por uma força misteriosa; aí a alma liberta-se e quando há golos acontece mesmo salvação.
De facto, o futebol como protótipo e simulação da vida mostra-nos como se vive, como se domina e como se vence. As regras são claras e os limites também. Nesta liturgia social dá-se a presencialização autêntica da realidade da arena. No jogo o homem realiza-se, chegando a vivência do acontecimento a transcender a própria realidade: sem consequências práticas satisfaz os mais profundos instintos. A pura esperança de que algo aconteça, de que aconteça o melhor, transporta a comunidade futebolística para uma dimensão dum real sem verdades complicadas. Futebol torna-se simplesmente o ponto de encontro de todas as esperanças, a potência em si. Neste potencial circula também a seiva social do não estar só, a comunhão!
No Estádio, ou no ecrã, longe das peias e dos muros da sociedade, num campo neutro e verde à volta duma bola prenhe, vazia de sentido e de significações complicadoras, reúne-se a comunidade universal que irmanada reza, chora, rejubila e grita, projectando de coração inocente e puro, a acção e o sentido que os jogadores realizam. Neste estádio não há moralismos nem verdades partidárias; reina o sentimento, a afectividade global. Nesta festa da vida só parece haver uma sombra: o árbitro (que os preços dos bilhetes e os ordenados escandalosos são para se considerarem com humor! Os preços altos dos bilhetes até servem para os políticos justificarem o aumento dos impostos: quem, não sendo rico, tem tanto dinheiro para ir à festa também pode dispensar algum para o desgoverno estatal!). Para o adepto, ao declinar do próprio sentido, já não conta a identidade, chega apenas a identificação: mais que uma sublimação, uma espécie de sacerdócio. Este, espantado da vida, refugia-se no relvado verde por 90 minutos e, depois da cerimónia real do estádio, passa ao jogo do dia a dia em que as ruínas duma sociedade cada vez se tornam mais presentes e a ânsia por um novo dia mais óbvia. As nuvens da semana são dissipadas pelo sol do fim-de-semana. Sonho e realidade, dois pólos da mesma ilusão! A desobriga de fim-de-semana nos estádios e televisões pode muito… Ela alivia e liberta a nação do povo e o povo da nação!
O jogo de futebol é um reflexo da nossa vida resumida em 90 minutos. É um jogo verdadeiro em que se joga em nome de regras mas em que estas são continuamente infringidas. Como na vida há bons e maus e o jogo é aberto: não se sabe quem ganha; certamente o melhor! A fé na vitória cimenta e dá consistência. Não faltam a dramaturgia, o sucesso, a derrota, o sofrimento, o gozo, as lágrimas nem tão-pouco as preces e urras além dum Happy End. Na vitória abraçam-se estranhos, na derrota consolam-se também. Lágrimas de sofrimento e de alegria, o subterrâneo da vida aflora. A solidariedade levanta as mãos. É uma celebração que aproxima, que liberta de complexos, de etiquetas e de todos os cabrestos sociais.
Nesta liga em vez de santos há heróis. Como numa comunidade religiosa também já se nasce portista ou benfiquista. O clube é a paróquia onde se é iniciado. Procissões e romarias estão na ordem do dia. Quando o ambiente o pede também se dão conversões. Expressões de simpatia por um outro clube podem levar à excomunhão. O futebol além dalgumas mazelas também tem as suas virtudes, tais como: persistência, autodisciplina, força de vontade, espírito de grupo, inteligência, solidariedade, etc.
No altar da televisão, o lembrar e reviver com devoção os actos litúrgicos dos jogos e estrelas do passado fazem parte da magia da celebração. No recordar comum de actos heróicos contra os excluídos, os leprosos da hora, irmanam-se povos. Supera-se a dicotomia de gerações e até já de sexos! Diria mesmo, se não fosse a carência do espírito seria a melhor religião porque sintetizaria o sagrado e o profano!
No estádio, acólitos, vestidos à maneira, com bandeiras e amplificadores, não faltando o coro, criam a atmosfera necessária para o acto. Ali, em campo, haverá o julgamento final em que a comunidade dos justos vencerá sobre a dos injustos. À entrada dos oficiantes entoa-se o hino, os hinos que dão transcendência ao acto litúrgico, à celebração do nós, da nação, do clube. Depois da liturgia do ofertório seguem-se as expressões da comunidade, e também os pedidos dos fiéis nos momentos de dor e penitência. Por fim é a hora dos comentadores e dos contabilistas.
Na Alemanha a política e a economia predispuseram 20 milhões de euros para que a imagem alemã brilhe. Se Portugal no “Europeu” queria fazer passar a imagem dum Portugal como jardim à beira mar plantado, a Alemanha pretende estar na ribalta do “Mundial” como o jardim das ideias. Com o futebol o mundo lá fora deve admirar a nação com a sua fatiota domingueira e o povo dentro das muralhas da nação deve esquecer tristezas e despertar para as riquezas nele adormecidas.
Se há muita coisa boa no futebol também há muita coisa a questionar. O significado do futebol, o seu financiamento ou apoio pelo Estado. Se por um lado se investem milhões em estádios com relvados magníficos, por outro alargam-se as relvas onde se lê: proibido pisara relva! Onde estão os lugares para as crianças brincarem ao lado das casas? As crianças são relegadas para o rectângulo do computador.
Em futebol tudo parece ser equacionado sob o molde dum divertimento anestesiador do presente. O que importa é conversa e fazer conversar, não importa o quê. À volta disto vive a política, a economia, os Media, a alma do povo. Enfim, um conversar sobre terceiros em que o eu e o nós são envolvidos e atados num nó cada vez mais cego à volta do Futebol. Este torna-se num Show encenado onde o sócio funciona como cenário, como alimento das câmaras de TV, para criar autenticidade nos estúdios. O jogo de Futebol como tal deixou de ser o centro das atenções para passar a ser compreendido como fenómeno político-social.
(Alguns leitores quererão saber qual a minha filiação futebolística. Sim, também eu sou mortal e portanto adepto dum clube: sou adepto do clube que perde. Melhor, para ser redondo como a bola e universal como o mundo, sou adepto de todos, dos que perdem e dos que ganham, dos masculinos e dos femininos, dos bons e dos maus!)
Como fenómeno universal, o futebol tem uma relevância mundial. Nos clubes há vedetas de todo o mundo. Tem grande potencial inter-cultural a caminho dum universalismo sadio. Só falta encher a bola de conteúdos mais integrais na construção dum mundo menos dialéctico e dualista do “ou… ou” para passarmos para uma consciência integral do “não só… mas também”….
António da Cunha Duarte Justo
a.c.justo@t-online.de