Aborto – despenalização da interrupção voluntária da gravidez

O Paradoxo Democrático
A política pretende um poder de disposição ilimitada sobre a vida e fundamenta essa pretensão com a liberdade humana e da ciência, ou, como no caso do projecto de lei N° 19/ até com a sua compaixão por mulheres. Como o argumento afectivo pode muito o referido projecto “Sobre a Exclusão da Ilicitude de casos de Interrupção Voluntária de Gravidez” confessa “em homenagem a todas as mulheres que sofreram na pele este flagelo e que durante todos estes anos se viram inibidas de qualquer protecção”. Com o seu sentir social, despenaliza também aquelas que “por razões de natureza económica ou social” realizem o aborto nas primeiras 16 semanas de gravidez “. Esta razão mostra o estado desumano da nossa sociedade que em vez de assegurar uma vida digna àquelas mulheres grávidas que por razões económicas se vêem obrigadas a abortar sem alternativa compensatória.
Torna-se óbvia e eminentemente necessária a criação duma instituição de adopção para crianças ainda no ventre materno (1) e de apoio a tais mães. Na falta de preservação da integridade humana recorrem ao argumento da moral arruaceira (2) para explicarem o projecto.
De referir a falta de espírito crítico e o espírito apelativo e emocional que apresenta a necessidade do referendo como “um imperativo de consciência” (3).
Antes de avançar na apresentação de alguns argumentos desejava que ficasse bem claro que a mães abortantes não se aponte o dedo incriminatório ou o machado da moral. Na discussão quer-se um ser consciente e adulto que possa estar para lá dos moralismos e interesses que estão por detrás do processo que o governo inicia ou de qualquer arauto duma moral anónima. Nada substitui a decisão consciente de cada pessoa como quer a nossa tradição cultural. Importante é trabalharmos todos no sentido de nos tornarmos mais Humanos e de ajudar outros a sê-lo também.
A legislação não pretende nem pode legalizar o aborto. Só cede à nossa fraqueza de seres humanos e apenas o despenaliza. A pressão e a necessidade dos partidos criarem consenso prevalece sobre a razão. Estes vivem dum relativismo ético que pretende predispor tudo e todos para um pluralismo de noções de valor necessário aos partidos. Só interessam visões partidas, sem interesse pelo integral, distante duma visão global dinâmica, no interesse da perspectiva, embora as leis da perspectiva já tenham sido alargadas pelas leis da nova física, pelos quanta e pela trindade (relativismo absoluto transcendente). A ideologia ecológico – naturalista e materialista parte da categoria valor da vida sem diferenciação entre animal e ser humano. Ela até chega a preferir o animal ao homem qualificando, por vezes, este de racista em relação às outras espécies. No partido dos Verdes há um grupo de radicais que desejaria que a população mundial humana se reduzisse a um quarto para que os vegetais e animais se pudessem desenvolver melhor!
A prática da interrupção voluntária da gravidez é discutível em todas as culturas por ser um atentado à dignidade humana e ao direito à vida. Na referida prática surge o conflito entre o direito da mãe à autodeterminação pessoal e o direito do feto, da criança, à vida, além dos riscos e complicações físicas e psíquicas da mãe e o empobrecimento da sociedade com menos um cidadão.
Segundo as ciências naturais, o código do óvulo fecundado já é o de um ser humano. Para os Persas era mais grave o aborto voluntário do que a infidelidade matrimonial. A doutrina moral católica considera o aborto um atentado à vida porque é contra o direito natural. A criança já recebe a alma no momento da geração.
A luta pela emancipação feminista torna-se mais forte nos anos sessenta com o argumento: “a barriga é minha” exigiam a libertação da pena e até consideram o aborto como um direito. A vulgarização dos anticonceptivos veio acalmar um pouco a luta.
Os partidos da esquerda viram na problemática e no sofrimento social de muitas mulheres uma oportunidade para chamarem a si eleitoras num público cada vez mais numeroso. Entretanto os homens exigem também o direito de voto na decisão de abortar ou não abortar atendendo a que se trata de decidir não sobre a própria barriga mas sobre o fruto – corpo comum, resultante da intervenção da mulher e do homem. Este é um ponto importante na discussão mas os partidos ainda o não tomam a sério por não ter relevância política suficiente a nível de votos!
A Discussão
O assunto do aborto é demasiado sério e tem demasiadas implicações para poder ser apenas regulado por leis. Também a discussão não deveria ser conduzida sob o desígnio de ideologia, e de fundamentalismos tradicionalistas ou marxistas. São latentes os dogmatismos de opinião quer dum lado quer do outro. Neste aspecto basta recordar alguns slogans: “holocausto de bebés”, “ontem o holocausto – hoje o bebé-causto”, “os especialistas da morte”, “fundamentalistas”, etc. Em tudo isto há muitas contradições no respeito pelos não-nascidos e no desprezo pelos nascidos e vice – versa! Por um lado tem-se respeito pelo repouso dos mortos no cemitério mas não pelo repouso da vida no ventre da mãe!
As duas partes apontam para interesses importantes que justificam: para uns a liberdade para outros a vida. Para complicar, este assunto não se pode reduzir a uma questão de opinião das massas mais ou menos manipuladas nem meramente resolvido abstractamente nos laboratórios do pensamento e da moral. Esta é uma questão vital de cada pessoa no encontro e na relação individual e social.
O Paradoxo Democrático
Para muita gente a vida dum ser humano só é considerada indisponível desde que se consiga defender. Este é um ponto muito fraco dos nossos sistemas sociais, diria mesmo, o busílis da legitimação da sociedade: o fraco não conta.
Na nossa sociedade o direito a ser defendido começa com o ser cidadão, não com o ser pessoa… Nesta visão pragmatista do ser humano, a falta de consciência de ser e a perda da consciência tem como consequência a perda do direito à vida, do direito de estar (seja ela feto, demência ou velhice incómoda). As democracias mutilam as pessoas ao quererem fundamentar os direitos do homem à vida apenas nos interesses concretos delas. Cortam a corrente à sociedade que passa a viver segundo o leme: o último que feche a porta! Ao reduzir-se o valor do ser humano a um estado de consciente ou inconsciente questiona-se o futuro de não nascidos e de nascidos. Tudo se torna subjectivo e relativo mensurável e valorizável em pesos e medidas deriváveis dos interesses da sociedade in loco. Nesta sociedade a vida é apenas uma qualidade dum determinado substrato material. Tudo se torna substituível na intencionalidade funcional, que se torna credo e ciência. Este substrato material reduz-se a veículo de necessidades e emoções mais ou menos oportunas, mais ou menos úteis e justificáveis da aventura ocasional. A vida e a morte tornam-se apenas o veiculado no espaço social. O que importa, no fim de contas é o suporte! A autodeterminação é deslegitimada através duma ideologia ad hoc que in loco e ad hoc determina o que é oportuna à vida ou não. O desejo espontâneo determina e o critério e a aceitação social. Por isso se faz tudo por nivelar tudo e todos pelo nível mais baixo. A hipersensibilização da opinião pública utilitarista torna-se o barómetro e a directiva do estado anímico social. Neste contexto não há lugar para uma ética com validade geral. A democracia passa a ser apenas um estado, um estado de espírito deficitário.
A Grelha Cultural Substrato
A auto – compreensão da nossa cultura ocidental considera a vida humana como tabu! Mesmo a vida dos seres inferiores deve ser respeitada e a licença para matar não deve ser apenas o resultado da opinião das massas movidas num ou noutro sentido. Também nenhum partido elabora um referendo ao povo solicitando-lhe uma decisão sobre a pena de morte para assassinos e terroristas! Aqui a vida ganha valor e os partidos sabem porquê?… Cada época da cultura dum povo tem os seus altos e os seus baixos. A filosofia cristã (síntese do pensar judaico – cristão, e greco-romano), como fundamento da nossa cultura não poderá nunca aceitar a permissão de matar. Ela está para a nossa cultura como a lei fundamental está para as leis; tal como as leis hereditárias da genética estão para os seres ela está para a nossa cultura! A sociedade com a sua cultura é um organismo vivo. Quem desconhece os fundamentos da nossa cultura, troca o ser pelo estar: canta de cuco mas anda sempre a pôr os ovos em ninho alheio.
Esta cultura é polar na sua dinâmica integral não excluindo portanto aquelas que os presunçosos e levianos chamam de pecadoras. Este assunto tem passado desapercebido na nossa civilização ocidental. Será talvez o tema do nosso novo século: através do estar dialéctico ao ser polar integral. O félix culpa!…
Vendados no seu processo dialéctico uns procuram fundamentos para poder matar e outros contra o matar em nome do direito! Aqueles, na dança da morte querem com a algazarra quebrar o tabu para partirem para uma nova situação. Talvez os desculpe o calendário, a festa pela festa ou meramente os foguetes encomendados!… Esta iniciativa funda-se na desgraça da aliança entre interesses políticos e uma casuística não esclarecida em que as vítimas são as mulheres e as crianças. Quer-se, através de cosméticas, uma política desumana em que o ser humano deve estar cada vez mais à disposição.
A vida é santa, é um direito incondicional e indisponível, não podendo tornar-se comerciável! Também a mãe não é apenas a portadora de material genético para uma criança. Segundo as ciências naturais a vida humana começa com a geração. Por outro lado nega-se à criança um direito à vida. A lei constitucional defende a vida mas a lei através do código penal despenaliza a não observação da mesma em certos casos.Querem reduzir o ser humano a um pedaço de matéria com valor relativo, tratando-o como um bocado de matéria sem valor. O Estado determina a morte da criança sem que ela tenha direito a advogado de defesa num sistema que regula a morte mas não ajuda a vida. No respeito pela pessoa e pelos seus defeitos Estado, Igreja e Indivíduo deveriam acompanhar as atingidas ajudando-as e acompanhando-as na esperança de elas se decidirem pela vida mas no respeito da sua decisão última sem as julgar. A vida humana é sagrada mas para nascidos e por nascer!
O ser humano não precisa de ser fundamentado nem de se justificar, nem necessita tão-pouco de ser encurralado nem sequer opiado por leis desumanas. Os direitos humanos não surgiram duma fundamentação racional mas sim declarados como axiomas a partir da religião na experiência do seu caminhar por vezes tenebroso ao longo da história. A razão não tem dogmas e estes se nalgum lado existem são dinâmicos no dogma dos dogmas que é a vida!…
É decadente procurar, através da plausibilidade das opiniões, passar-se à relatividade do valor da vida para assim se criarem novas realidades enganosas. Querem a castração dum povo de espírito caduco em que todos os gerados já seriam poucos. Não querem mães nem filhos, só querem fêmeas para cobrir e depois enjeitarem… Vivem da desobriga do amor no galanteio com abortantes e homossexuais que não amam mas conquistam com leis que os amarram ao esqueleto do partido. Não tomam a vida nem as pessoas a sério no seu caminhar fiel a princípios não pensados até ao fim!
Cria-se um aparelho de auxiliares da maquinaria de liquidar pessoas consideradas coisas. Faz-se a vénia à opinião e não à vida. Também se fala da honra dos médicos que receitam o aborto; por falta de tempo fazem tudo na liberdade de opiniões sem considerarem os / as atingidos/as. O aborto da criança torna-se banal porque fruto da banalidade duma vida abortada! Abortar será mais barato que arrancar um dente. Apesar de tudo permanece uma hipocrisia que pelo facto de ser colegial não se fundamenta. Assim o pluralismo das ideias de valor pressupõe a abolição da validade universal de valores e consequentemente a anulação da moral e nesta a decadência da democracia.
Com o direito sobre a vida e sobre a morte, a pessoa desobriga-se, desresponsabiliza-se passando a reinar a arbitrariedade seguindo-se-lhe o despotismo
António Justo

(1) Seria óbvia a criação duma instituição mediadora de adopções de crianças declaradas para aborto por razões económicas (caso ainda não haja nenhuma para o efeito específico). Esta poderia ser uma fundação benemérita particular ou a cargo da Igreja. Necessitar-se-ia duma legislação de desburocratização das leis de adopção para o assunto em questão. Desembargo da adopção acautelada do negócio.. Eu estaria disposto a colaborar .
(2) Querem a lei para preservação da integridade moral, dignidade social e da maternidade consciente.

(3) O Projecto de Resolução N.° 148/X diz que o imperativo de consciência se expressa num referendo em que os cidadãos eleitores recenseados no território nacional sejam chamados a pronunciar-se sobre a pergunta seguinte: “Concorda com a despenalização da interrupção voluntária da gravidez, se realizada, por opção da mulher, nas primeiras 10 semanas, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado?” Os cidadãos eleitores recenseados no território nacional foram chamados a pronunciar-se em 28 de Junho de 1998 sobre o mesmo assunto recusando-o. Os políticos sabem que o povo muda facilmente de opinião e tentam de novo a sua chance!…

António da Cunha Duarte Justo
© 2006 António Justo:
in “Enciclopédia da Vida”

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António da Cunha Duarte Justo

Actividades jornalísticas em foque: análise social, ética, política e religiosa

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