Bilinguismo – A Vantagem de Ser Diferente

De crianças binacionais a pessoas biculturais / interculturais

Muitas vezes as crianças filhas de imigrantes são intituladas e definidas na subcategoria de “Estrangeiras”. Vivem numa situação discriminatória e coerciva entre os outros, a maioria, com consequências determinantes no seu processo de aprendizagem, na sua biografia. Esta situação arrast-se por geraões e manifesta-se, por vezes, em sintomas de fobia e em irregularidades na vivência do dia a dia.

Na minha actividade profissional com crianças bilingues conheço casos de recusa e até de mutismo. Referir-me-ei (1) mais à realidade luso-alemã, dado ser este o meu campo de acção (professor de crianças e jovens bilingues de origem portuguesa, brasileira, angolana, etc.).

A heterogeneidade demográfica da Alemanha, onde aproximadamente 9% da população é estrangeira, não tem sido suficientemente tida em conta no processo educativo. De notar que o comportamento da população estrangeira em relação à alemã é muito diferenciado. Dois extremos: a população portuguesa tende não só a integrar-se mas até a deixar-se assimilar totalmente pela população ambiente. Já no que se refere à população turca ou em geral muçulmana observa-se o extremo contrário. Esta reage negativamente, duma maneira geral, a qualquer tentativa de integração preferindo viver no ghetto formando mesmo uma sociedade paralela nas grandes cidades. Naturalmente que esta realidade não tem explicação monocausal.

A atitude quer dos autóctones quer dos imigrantes em relação ao outro é determinante no sucesso ou insucesso da criança estrangeira. A carga étnico-cultural aliada à carga da camada social em que se nasce condiciona, ainda hoje, determinantemente o ser e estar social da pessoa humana…

O fenómeno do bilinguismo é de tal forma complexo e diferenciado que seria irresponsável tirar-se conclusões generalizadas e generalizantes a partir de qualquer investigação por mais científica que ela seja.

Definição de crianças Bilingues
A ciência não é unânime na definição de bilingue (pessoa crescida em duas culturas). Na investigação alguns definem bilinguismo em relação ao começo da aprendizagem. Este pode ser mínimo em relação à segunda língua. Outros, como Bloomfeld, pressupõem que as duas línguas não só se dominem como línguas maternas mas que a criança tenha convivido com as duas línguas desde o nascimento. Para aqueles que partem principalmente do critério de eficiência linguística acentuando mais a tradição estruturalista da psicolinguística considera-se relevante o emprego das duas línguas em diferentes contextos sociais.

Outros distinguem o bilinguismo em “natural”, “ aditivo” e “ subtractivo”. No bilinguismo natural pai e mãe falam cada um o seu idioma com a criança; no bilinguismo aditivo uma pessoa apropria-se duma segunda língua mantendo as capacidades da sua língua materna ou alargando-as; fala-se de bilinguismo subtractivo quando a competência da língua materna é influenciada negativamente através da aprendizagem duma segunda língua. (Isto acontece muitas vezes nos filhos de trabalhadores imigrantes).

Segundo a minha experiência importante é a aquisição da língua duma forma autêntica envolvida numa cultura segundo o princípio “uma pessoa uma língua”. Determinante é que as duas línguas funcionem independentemente uma da outra não havendo necessidade de recorrer à tradução.

O areal cerebral da língua materna e paterna
É importantíssimo que a criança oiça e fale as duas línguas até aos três anos porque, especialmente até aí, o cérebro elabora um espaço (areal) específico próprio onde localiza a língua materna (ou paterna e materna) possibilitando uma diferenciação das línguas aprendidas não havendo assim interferência delas. Este sector cerebral da (s) língua (s) materna (s) começa-se a fechar a partir dos três anos. A Ressonância Magnética Nuclear (NMR) funcional mostra que a partir dos três anos já são englobadas outras partes do cérebro na função de gravar e de produzir a língua.

A confrontação das crianças com as duas línguas constitui um treino fisiológico do cérebro: capacidade da identificação da diferenciada fonética, etc. No primeiro ano de vida o bebé é muito sensível à melodia e muito receptivo à variedade de sons registando-os na malha cerebral onde os sons se registam. A dificuldade que muitas pessoas têm na exactidão da fonética deve-se a terem ouvido só mais tarde determinados sons. A partir dos 7 anos o centro cerebral onde se localizam as línguas maternas encerra-se passando a aprendizagem a ser assumida por outras zonas cerebrais, as línguas aprendem-se então com se aprendem outras coisas.

Também é possível a aprendizagem duma terceira língua. Importante é que o falante seja original, isto é, que a língua que fala seja a língua do coração, isto é uma espécie de língua materna.

Problematização da Educação bilingue
Há investigadores que problematizam o ensino bilingue como um conflito a acrescentar aos que a criança já tem no seu desenvolvimento normal. Estes defendem que a criança deve ser iniciada apenas numa língua materna, só assim poderiam atingir um desenvolvimento máximo da sua personalidade e das suas capacidades linguísticas e cognitivas. Afirmam que a aprendizagem simultânea de duas línguas constitui uma exigência demasiada para a criança conduzindo a um atraso no desenvolvimento de cada uma das línguas. Esta visão foi ultrapassada e refutada por uma investigação moderna mais séria, salvo em casos em que as duas línguas faladas em casa se processem sem nível nem estrutura.

A realidade ensina que a aprendizagem da língua e o desenvolvimento da personalidade é individualmente muito diferenciado de pessoa para pessoa independentemente do aprendente ser bilingue ou monolingue. As investigações científicas têm mostrado que os bilingues se movimentam dentro do âmbito da norma da aprendizagem uma vez comparados com os monolingues. O problema da opção por uma língua materna como ponto de partida vantajoso para a aprendizagem carece de base científica atendendo a que há muitos outros factores que fogem às investigações científicas ou melhor, que não são integrados nelas. Muitas crianças crescem em meios deficitários a nível de língua e cultura: emigração muitas vezes falando linguagem familiar.

Na literatura sobre bilinguismo domina a opinião de que a aprendizagem simultânea de duas línguas não prejudica a aprendizagem nem a socialização da criança. As pesquisas mostram que há vários ritmos de aprendizagem dependendo ele de criança para criança independentemente do ser bilingue ou monolingue. Bilingues misturam por vezes os idiomas mas logo que se encontram num ambiente monolingue já não o fazem. Eu mesmo pude observar esse fenómeno na escola. Problemática é a situação daquelas crianças que crescem num meio onde se fala uma mistura espontânea de duas línguas ou um português e um alemão macarrónicos. As crianças, neste caso, correm o perigo de semilinguismo não falando nenhuma língua bem, passando a interferência linguística a ser regra nas duas línguas. As desvantagens que poderão aparecer são geralmente devidas ao estatuto social familiar em que vive a criança e ao ambiente mais ou menos refractário a ela ou à sua cultura. O prestígio ou desprestígio da língua desempenha um grande papel na aquisição bilingue.
Possíveis deficiências linguísticas, num caso ou noutro, inerentes à aprendizagem recuperam-se no ensino secundário. Pelo que pude observar nos meus alunos a aprendizagem da língua portuguesa deu-se de forma muitíssimo gratificante até ao sexto ano. Do 7° ao 9° manifesta-se mais a concorrência do ensino alemão em desvantagem do português, voltando este a ter grande relevância do 9°. ao 13°. ano. Nesta fase Portugal e a cultura portuguesa fascina-os. O resultado da educação bilingue depende sempre da maneira de educar dos pais e da reacção do meio ambiente envolvente ao bilinguismo.

Experiência e Estratégias
Em casa a minha esposa que é alemã fala sempre alemão com os filhos e eu falo o português, desde o nascimento da primeira filha… O princípio “uma pessoa uma língua” revela-se importantíssimo para a estabilização das línguas. Isto é indispensável para que a criança desenvolva um mecanismo e uma orientação automática.

Tivemos quatro filhos a que demos educação bilingue: a Graciette, a Sonnya, o Elias e o David. Interessante foi ter observado diferentes comportamentos deles a partir do momento em que entraram no Jardim-de-infância. Enquanto que o David a partir daí se negou a falar o Português comigo os outros continuaram a falá-lo. Pude ver esta experiência repetida em alunos provenientes de casamentos mistos em que um parceiro falava português e o outro alemão. As crianças falavam sempre, entre elas, o alemão.

Até à entrada no jardim-de-infância a criança responde automaticamente em português ao pai e em alemão à mãe ou apenas em português no caso dos dois parceiros falarem o português.

A partir da entrada da criança para o Jardim-de-infância são necessárias estratégias especiais para que a “língua fraca” não sofra porque a língua dominante tende a excluir a outra. Neste caso pode recorrer-se à funcionalidade escolhendo determinados meios onde ela se fale e estratégias adequadas. No caso de pais estrangeiros é óbvio que em casa se fale sistematicamente o português apesar da possível resistência por parte da criança. Além disso torna-se necessário planear encontros regulares gratificantes onde se fale a língua em maioria. É relevante falar-se uma língua com bom nível e com vocabulário rico. Aqui pode ajudar o recurso à leitura de livros.

Pude constatar que os meus alunos duma maneira geral falam o português em casa com os pais e alemão fora de casa com os outros interlocutores. Da actividade com os meus alunos posso concluir que aqueles onde os pais falam o alemão em casa ou uma mistura espontânea sem método, esses alunos têm muita dificuldade em aprender o português e exprimem-se como se tratasse duma língua estrangeira. Geralmente estes têm dificuldades também na disciplina de alemão.

Uma constante: geralmente os pais falam consequentemente o português em casa enquanto que muitas mães, a partir do momento em que o filho entra no jardim infantil ou na escola, procuram falar alemão com os filhos ou misturam. Talvez na tentativa de aperfeiçoarem o seu alemão ou até para serem corrigidas. Isto é muito problemático. É natural que a criança que entra na escola ofereça resistência e queira falar o alemão em casa porque não nota a sua relevância no meio em que vive.
Há crianças que se negam a falar a língua materna, chegando até ao mutismo. Se a criança recusa falar o português não a devemos forçar. Mesmo assim o pai e a mãe (no caso de serem os dois de língua portuguesa) deveriam falar com ela só português.

Vantagens que as crianças bilingues têm
Duma maneira geral as crianças bilingues são mais inteligentes.

Em relação aos monolingues, os bilingues chegam a apresentar maior nível de competência social e emocional-cognitiva. As capacidades empáticas e a abertura ao novo tornam-se normalidade.
Efectivamente, a actividade cerebral da criança bilingue foi já cedo confrontada com processos mais complexos na sua aprendizagem.

A ciência nas suas investigações regista uma relação positiva entre inteligência e bilinguismo.
Investigadores provaram que bilingues aprendem mais facilmente o inglês. Na parte cerebral que elabora a língua também se encontra o areal cerebral para a memória do trabalho e o areal para a solução de problemas. Com o treino das línguas estes areais também são abrangidos e treinados. Uma outra vantagem é o facto de bilingues reagirem mais depressa e activarem mais a capacidade de reflectir criticamente. Crianças com educação bilingue conseguem, depois da escola primária, melhores resultados na leitura, dado se concentrarem mais no sentido do que no som (fonética). Aprendem com mais facilidade línguas estrangeiras e desenvolvem as capacidades intelectuais e de abstracção desenvolvendo várias estratégias de aprendizagem. Desenvolvem as capacidades de empatia, tolerância e de interpretação, não sendo de menosprezar maior competência intercultural e de diplomacia. Enquanto que a formação do pensamento do monolingue acontece numa relação directa com um objecto, um meio homogéneo o bilingue torna-se menos formal, mais relacional. É mais processual atendendo a que a „tabula rasa” era dinâmica.

Como educar uma criança bilingue
Para o linguista Jean Petit a aprendizagem bilingue assenta em dois princípios fundamentais: bilinguismo desenvolve-se tanto mais natural quanto mais cedo começar a educação correspondente. Ela é experimentada de forma directa como meio de comunicação e não com conteúdo de aprendizagem. Segundo ele os dois idiomas devem ser apresentados por dois educadores ou professores diferentes.

A aprendizagem simultânea das duas línguas traz muitas vantagens. Até aos três anos de idade o cérebro da criança é como uma esponja, muitíssimo receptivo. A aprendizagem da língua transmite não só informações, mas sentimentos, cultura e outros conteúdos não verbais. Importante é que quem fala a língua não fale uma língua estrangeira mas uma língua do coração. Língua do coração é aquela em que amamos, rogamos pragas e fazemos contas (língua materna ou apadrinhada!).
É muito importante que as crianças aprendam as línguas brincando.

O prestígio da língua da cultura é determinante para o processo da sua aprendizagem. Aqui tornam-se muito importantes os testemunhos da mesma: o papel dos pais e dos educadores. O carácter e relação dos multiplicadores ir-se-á projectar na maneira como a criança valorizará ou desvalorizará inconscientemente a determinada língua ou cultura.

Necessita-se por isso da criação de espaços protegidos para a criança onde esta possa experimentar a mais valia da sua situação. Não se trata de aprendermos a ser portugueses, brasileiros ou alemães, mas de aprendermos a tornar-nos seres humanos abertos.

A criança e as suas culturas precisam de ser defendidas e positivamente apreciadas pelo ambiente, pormenor a que os educadores deverão prestar atenção especial.
É também relevante, para a eficiência do processo de aprendizagem, a posição dos pais no que respeita às vantagens ou desvantagens da educação bicultural. Se um parceiro é do parecer que a aprendizagem de duas línguas é prejudicial à criança, esse facto torna-se por ele mesmo um factor negativo da aprendizagem.

A reacção apropriada à renúncia duma criança por um determinado idioma deve ser uma atitude compreensiva e ter como consequência uma maior dedicação afectiva à criança. Mesmo no caso de divórcio a criança não deve ser privada dos seus vínculos culturais e afectivos.

A oferta de duas línguas à criança desde o princípio são factores muito positivos parta o desenvolvimento psicológico e escolar como têm provado as investigações científicas dos últimos anos.

Processo especial de Ensino Bilingue e sua inserção
O sistema educativo é um processo genérico de integração da criança no anonimato social. Os nossos sistemas de ensino partem dum modelo estático de ensino que como tal não comporta o específico e como tal o bilinguismo.

Até 1989, a nível de investigação, o bilingue era sempre enquadrado no sistema de ensino monolingue vigente que reduzia o bilingue a mero objecto de comparação com o monolingue. Os trabalhos de Grojean apresentaram então a exigência de se tratar o bilinguismo como independente. Viu-se a necessidade de não considerar o bilingue como dois monolingues numa mesma pessoa. O bilinguismo constitui uma realidade própria que exigiria outros processos de diagnose próprios que possibilitem uma pedagogia específica. Neste sentido seria de fomentar mais processos especiais de ensino.

A sociedade deveria partir dos recursos que os bilingues são portadores e fomentá-los. Na Alemanha há vários modelos de resposta ao problema. A maioria deles porém parte duma visão monolingue do ensino. A normalidade no ensino regular oferece a aprendizagem da língua como idioma estrangeiro, havendo nalgumas escolas o ensino de língua e cultura portuguesas para emigrantes. Há também as escolas europeias e certas iniciativas privadas com grande gama de modelos pedagógicos mais ou menos eficientes. O procedimento de integração de crianças bilingues que frequentam as escolas europeias ou certas escolas internacionais é mais eficiente mas normalmente para privilegiados.

Há modelos de jardins infantis que aplicam 13 horas Francês / 13 horas Alemão na semana. Durante dois dias é responsável uma pedagoga e nos outros dois a outra. Os dois professores possibilitam a aprendizagem e identificação das duas línguas em diferentes situações. É importante que o idioma se aprenda num ambiente natural de jogo com outras crianças.

Em Berlim, Frankfurt e Munique há iniciativas (associações de brasileiros, portugueses e alemães) tendentes a fomentarem uma educação bilingue a nível pré-escolar. Isto exige grande competência e consciência cultural.
Em algumas zonas onde lecciono observo, entre mães mais novas a consciência da necessidade de organizar e criar iniciativas onde se joga, canta e dança à portuguesa. Movidas apenas pela necessidade e pela boa vontade não são apoiadas. Estas iniciativas individuais não deixarão rasto porque depois do quarto ano as forças adversas e alheias se tornam demasiado fortes na falta duma estrutura sólida apoiante.

Integração Social
Quanto ao processo e aos diferentes procedimentos de inserção social, esta é uma questão muito bicuda. De facto, no que respeita aos filhos de emigrantes trabalhadores, em geral estes não têm as mesmas chances que as crianças dos países de acolhimento, atendendo à sua autobiografia condicionada a um ambiente muitas vezes precário e distante dos valores culturais. Por outro lado a integração das crianças na escola é insuficiente devido a uma politica escolar orientada para o monolinguismo. Muito prejudicial para crianças de certas etnias torna-se o facto da sua demarcação perante a sociedade de acolhimento.
Na Alemanha, uma grande percentagem das crianças estrangeiras, depois do 9° e 10° ano, não se encontra preparada para ingressar numa formação profissional, segundo os resultados PISA (Programa Internacional de Avaliação de Alunos). Principalmente a maior parte das crianças turcas vivem em Getto tornando-se vítimas da vida familiar e política vivendo num isolamento em grande parte querido, o que fomenta a existência de sociedades paralelas e atitudes agressivas.

Com os portugueses observa-se o fenómeno contrário. Assimilam-se sem deixar rasto, o que também não é bom. (O Português embora consciente de si tem uma tendência a considerar o que é estrangeiro melhor que o nacional. Isto tem a ver com a experiência inter-cultural e com a tradição migratória dum povo sempre obrigado a emigrar. Nesse sentido seria interessante fazer-se um estudo relativamente a maneiras de dizer portuguesas que manifestam um certo antagonismo entre admiração e menosprezo pelo nacional, e uma consciência internacionalista, como se pode ver em: “Ver-se grego”, “isto é chinês”, “trabalhar como um mouro”, “isso é uma americanice”, “é como o espanhol” mexe no que não deve, “é para inglês ver”, “vive à grande e à francesa”, no regatear “é pior que os marroquinos”…E se a coisa corre mal “é à portuguesa”).

O nível escolar e social das crianças migrantes em geral é fraco com uma grande taxa de insucesso escolar.

Quanto às crianças portuguesas da região em que ensino desde há 27 anos, seria levado a afirmar que o nível do seu sucesso escolar e social corresponde à média dos alunos alemães. Atendendo às circunstancias ambientais de proveniência é uma situação excepcional.
Na Alemanha observa-se contudo grande interesse pela frequência da língua materna ao contrário do que acontece na França. As próprias crianças portuguesas comentam a triste figura que as crianças filhas de portugueses residentes na França fazem nas férias em Portugal. Estas, em geral, não podem comunicar na língua de seus pais. Um problema cultural e de política de língua! Aqui há muito a fazer. Tendo-me dado conta desta problemática, desde o início, e aproveitando do grande interesse dos portugueses pelos seus filhos procurei motivar através de reuniões e iniciativas a forças latentes nos encarregados de educação. A política do EPE (ensino português no estrangeiro) esteve sempre demasiadamente orientada para os interesses duma administração autista incapaz de captar as necessidades reais da comunidade portuguesa e dos luso-descendentes.

As associações portuguesas, que na emigração portuguesa para a Europa foram tão importantes como pontos de referência, cada vez se tornam mais precárias e raras. Urgem novas onde se proporcione o encontro de crianças e jovens portugueses. O mesmo se diga sobre a incrementação de associações bilingues e grupos pré-escolares onde se promova o intercâmbio intercultural. A precariedade financeira de iniciativas e projectos deveria ser compensada também pelo estado português e pelos departamentos de cultura, conselhos de estrangeiros, etc.

Dado a melhor altura para a aprendizagem automática da língua e cultura ser, segundo a minha experiência, até ao sexto ano de escolaridade é óbvia a criação de espaços, de lugares naturais da língua e cultura portuguesas. Também depois são importantes locais onde se aprenda a língua portuguesa por imersão. Grupos consumidores conscientes de cultura deveriam incitar esforços no sentido de criarem centros de língua portuguesa integrados por participantes dos vários países de língua portuguesa.

No centro de qualquer iniciativa terá que se ter presente a importância de possibilitar à criança tornar-se ela mesma. O incentivo terá que ter em conta a sua vontade e gostos. Se o ambiente é natural não haverá problemas. A língua é primeiramente relação e comunicação. Quem não tiver intuído isto dificultará o processo de aprendizagem.

No caso dos casamentos mistos os dois pólos culturais deverão estar em situação de igualdade e ser apreendidos pela criança numa atmosfera de respeito numa relação bicultural consciente entre os dois parceiros. As duas culturas são assim as duas traves mestras, as duas colunas que suportam o projecto educativo bicultural. Uma cultura tem características específicas, um espírito, uma alma que a outra não tem. As duas são imprescindíveis.

Se uma cultura não for bem tratada e bem considerada, a criança poderá passar a mancar pela vida fora “envergonhando-se” duma parte do seu ser de cidadão.
Também a frequência do Ensino do Português se torna essencial para o alargamento e complementação cultural para filhos de casamentos mistos ou de imigrantes.

Resumindo
Uma educação adaptada às crianças em situação bicultural terá que ter em conta já antes do nascimento do bebé uma preparação e uma preocupação especial dos progenitores. Relativamente à educação da criança bilingue seria importantíssimo proporcionar-se o mais possível a aquisição das línguas por imersão, a nível pré-escolar e escolar e para-escolar. (2)
Pais bilingues deverão começar a falar, desde o nascimento do bebé, os dois idiomas segundo o princípio: “Uma pessoa – uma língua”. É importantíssimo o aspecto emocional dos representantes das línguas, no seu dia a dia, entre si e com as crianças.

Não se deve obrigar uma criança a falar. Pode recorrer-se a processos indirectos de a interessar, não desistindo de falar a língua mesmo que a criança se negue a falá-la.

A língua falada, diferente da língua ambiental geral, deve ter espaços próprios onde seja experimentada em ambiente de maioria com as características culturais próprias, como jogo, danças, músicas, futebol, filmes, e outras referências culturais. É necessário o fomento de instituições com crianças bilingues. (3)

António da Cunha Duarte Justo
Pedagogo
“Pegadas do Tempo”

(1) Nota Prévia: Depois de ter lido imensos autores que investigam o fenómeno bilingue verifiquei um problema subjacente ao sistema de sociedade defendida pelo investigador, confirmando os resultados das correspondentes investigações a ideologia dominante. Se para uns dominava o espírito nacionalista, outros correm o perigo de colocarem a sua investigação ao serviço dum multiculturalismo superficial. Um outro problema tem a ver com A investigação feita na época em que se dava grande importância à defesa da raça privilegia só uma língua materna sendo os resultados das suas investigações negativas em relação aos bilingues. Nas sociedades inter-culturais os resultados são positivos em relação aos bilingues. Um outro problema da investigação é a existência de muitos casos que descrevem a experiência bilingue de famílias isoladas. Outras investigações analisam situações escolares em que a população escolar provêm duma camada social em que a cultura como tal não é apreciada. Investigações com crianças bilingues provenientes de elites apresentam resultados muitíssimo positivos da educação bilingue.
Para não me ilibar de subjectividades devo declarar que baseio as minhas posições na longa experiência de família bilingue e de professor de bilingues, podendo estar subjacente o que escrevo, embora inconscientemente ao facto de ser defensor do inerculturalismo e não do multiculturalismo.

(2) Teria muito mais a dizer, mas fica aqui um desafio para me envolverem na promoção desta realidade que é o bilinguismo, ainda não presente na consciência dos mais responsáveis.

(3) Ler também o meu artigo em: http://blog.comunidades.net/justo
no Arquivo de Outubro número 2, 2005 e o artigo no mesmo blog colocado em Novembro passado sob o título “Bilinguismo.

António da Cunha Duarte Justo

Mística – O Futuro da Religião e da Sociedade

A religiosidade cada vez se autonomiza mais numa necessidade de diferenciação mais individualizada. O mesmo se dá na política. Esta, como a religião, está demasiado preocupada consigo mesma para poder notar as verdadeiras necessidades do povo. O que neste artigo refiro a respeito da religião pode-se aplicar às instituições políticas.

Na Alemanha a percentagem de pessoas que se declaram religiosas corresponde à percentagem de votantes nas eleições para o parlamento; isto não quer dizer que as pessoas que votam são as mesmas que se declaram religiosas. Seria interessante uma investigação nesse sentido.

À secularização segue-se a individualização.
As pessoas manifestam diversas necessidades de salvação a que correspondem diferentes necessidades espirituais implicando diferentes espiritualidades e diferentes práticas..

O acesso ao religioso pode dar-se de forma cognitiva ou experimental. Nas espiritualidades mais que o acto cognitivo religioso predomina o dado experimental, a experiência religiosa, com carácter específico pessoal. No mundo católico conhecem-se várias espiritualidades: salesiana, jesuíta, dominicana, franciscana, beneditina e outras. Estas porém andam ligadas geralmente a ordens e congregações com um público reduzido. As paróquias, duma maneira geral, não estão preparadas para responder a muitas das necessidades espirituais mais individualizadas das pessoas. Limitam-se a oferecer serviços litúrgicos indiferenciados para a generalidade. As instituições estão mais preocupadas com a ocupação de lugares e funções à margem dos destinatários.

De momento observa-se na sociedade uma grande procura de espiritualidades, novas formas de ser e de estar, emancipadas das instituições que até agora possuíam o monopólio da organização e da responsabilidade. A consciência humana pretende dar um passo em frente no seu desenvolvimento. As instituições terão de se humanizar não chegando continuar a justificar-se pelo seu fim em si. Doutro modo carregarão sobre si mesmas a responsabilidade de se tornarem elas mesmas em impedimento do desenvolvimento individual! O anonimato económico, social e estrutural tornou-se de tal modo insuportável que, se as instituições estabelecidas não se preocuparem em dar verdadeiras respostas ao homem todo, no respeito efectivo pela sua dignidade, provocará comportamentos insuportáveis.

Ao non sens da nossa vida civil corresponde maior procura de valores perenes e o surgir de novos indicadores de religiosidade. Não é suficiente o aspecto cognitivo da religião -a abordagem racional, o aspecto da experiência – o aspecto vivencial, manifesta exigências duma religiosidade mais diversificada. Esta expressa-se nuns como um “sentimento da presença de Deus”, noutros como o”sentir um poder sagrado na natureza”, noutros como “o sentimento de que defuntos estão presentes”, noutros ainda como a “vivência da unidade” ou como “uma relação pessoal com Deus”, etc.

Por todo o lado se assiste a uma privatização da religião acompanhada da sua desinstitucionalização. O mesmo processo se dá na política. O teólogo Karl Rahner afirma mesmo:”O devoto de amanhã será um místico.”. A religião é cada vez menos transmitida, menos experimentada directamente e por isso menos presente. A complexidade quer da religião cristã quer da política cada vez se distanciam mais do povo devido à sua incapacidade de ser povo, de ser eu-tu-nós e ao facto do povo não ter hipótese de compreender fenómenos complexos e de cada vez estar mais condicionado pela TV que fomenta a opinião sem noção, uma atitude infantil contra o saber, um subjectivismo analfabeto. Se no século passado terá dominado em alguns meios o aspecto folclórico de Fátima, futebol e fado hoje torna-se cada vez mais digno de salão o espírito plebeu duma Televisão cada vez mais mata tempo e distraccão vulgar.

A vivência religiosa através da experiência é diferente do sentimento religioso através da reflexão cognitiva. No futuro será mais importante a experiência da religiosidade. Aqui está mais presente a experiência do que o acto cognitivo. Naturalmente que na experiência religiosa não faltará o elemento objectivador da reflexão. Este porém não se pode identificar com a experiência mística. A reflexão manca sempre atrás da experiência mística. O aspecto cognitivo a que a pessoa religiosa se encosta, o tipo de espiritualidade, pode constituir uma espécie de crivo. No âmbito cristão diria mesmo que aí a experiência mística ganha um chão possibilitador da individualidade e do nós, tal como na fórmula trinitária cristã.

Neste sentido, as congregações e ordens religiosas terão de fazer um esforço por tornar mais transparente e imediata uma espiritualidade que, através da sua forma de vida conventual conduz lentamente à experiência mística. Hoje essas jóias escondidas nas ordens terão que ser manufacturadas de tal forma a serem apreciadas por um tipo de ser humano apressado e que não suporta muito tempo de preparação, de ascética ou catarsis, dado querer chegar logo ao essencial, à vivência fundamental. Naturalmente que os iniciados no religioso e no numinoso não poderão correr o perigo de, para democratizar tudo, arranjarem atalhos que poderiam levar a identificar uma experiência sentimental com a experiência mística. Esta implica que a pessoa passe pelo cadinho do grande deserto místico e não seja confundida com uma espécie de orgasmos duma mera experiência sentimental, ou dum acto cognitivo. Diria que a experiência mística se realiza para lá de todos os limites, tal como o númeno que o espírito concebe para lá do fenómeno, não o podendo expressar nem através do entendimento nem através da experiência.

Também a vivência mística é inexprimível, fica na evidência da própria experiência. O busílis da questão para os mais responsáveis estará em ter uma antena para as diferentes necessidades e consequentes espiritualidades e em criar ambientes na paróquia onde as diferentes necessidades se possam formar e tomar expressão em diferentes espiritualidades. A tarefa não será fácil dado que muitas pessoas conseguem compreender o religioso cognitivamente mas não o relacionam com uma experiência religiosa e vice-versa.

Hoje já não é a igreja a única transmissora de valores e de auxílio para a vida. Os meios de comunicação social assumem cada vez mais esta função. Dado que a nossa sociedade é dominada pela mentalidade utilitarista não é de esperar para ela muitos impulsos da Igreja ao contrário do que acontecia no passado. Hoje a sociedade deixa-se distrair com a excitação cíclica que os Media oferecem, assumindo eles ao mesmo tempo a função de cano de escape. O resultado será a escuta e a nova criatividade que se pressuporá para o novo tipo de instituição.

Da ordem dialéctica para a ordem mística
A Igreja terá de se preocupar mais com a sociedade e menos consigo mesma. Doutra forma cada vez dará menos impulsos à sociedade perdendo assim a sua relevância. A pessoa terá de deixar de ser considerada objecto para se tornar sujeito. O cristianismo iniciou a era do sujeito mas informando-a na ordem dialética platónico-aristotélica. Esta foi por assim dizer a era de Jesus. A nova era do cristianismo, o novo Natal, será menos religiosa mas mais cristã, nela se iniciará a ordem mística, a era do Cristo. Aqui o ser religioso realizará o encontro do Cristo no Jesus, o encontro do divino no humano. Os tempos já estão maduros para tal. Doutro modo a Igreja continuará a ocupar-se mais com a pedagogia do que com a Verdade, mais com o cognitivo do que com a experiência à semelhança dos professores que de tão preocupados com a pedagogia se esquecem dos conteúdos a transmitir. Ao persistirem em continuarem assim, transmitem a impressão aos externos de que religião é algo importante até um certo grau do desenvolvimento.

Hoje é visível e latente uma nova religiosidade que terá de ter resposta com novas iniciativas. Estas devem ser dirigidas especialmente à mulher. De facto a mulher está mais perto do integral, do global e por isso mesmo da mística. Como penso que neste novo século a mística ganhará maior espaço social, nele será muitíssimo importante a integração da feminidade. De facto, no século XXI a mulher porá o pé na porta da história não podendo esta fazer-se sem ela. Naturalmente que o novo espírito, já não dialético não se realizará na afirmação dos contrários, isto é a afirmacao do homem não pode acontecer à custa da mulher nem vice-versa. Já é tempo da Igreja Católica alargar a ordem do diaconato à mulher e o sacerdócio a pessoas casadas. Não se trata aqui de seguir o espírito do tempo mas de reconhecer os sinais dos tempos através dos quais o espírito fala..

Lentamente nota-se a necessidade de se reconhecer a dialéctica apenas como processo de abordar a realidade e não como a realidade em si. Trata-se de integrar a lei positiva e a lei natural. Já vai sendo tempo de se transcender a mentalidade polar, masculina não para o outro extremo polar da feminidade mas para a sua síntese num novo processo histórico e humano de realização e afirmação que seria o processo místico integral.

A reespiritualização da sociedade embora com um cunho feminino terá de ser na bipolaridade integrada, tornando-se mais feminina (consciente da sua bipolaridade masculina e feminina equilibradas) no que ela tem de intuição mística.

Os administradores externos do religioso em certos lugares já se esfregam as mãos ao verificarem que hoje as necessidades religiosas se tornam mais visíveis na sociedade, mesmo através de expressões laicas das mesmas. Isto é porém a reacção ao processo erosivo e mesmo ao descarrilamento em que se encontra a sociedade ocidental. A religião embora apática e desajustadamente reage contra a entropia.

A sociedade, tal como as instituições, continua a viver dos rendimentos, na inércia. A procura de religiosidade manifesta por muita gente é uma reacção de pessoas mais sensíveis aos sinais dos tempos que não pode ser mal-interpretada; ela é também contestação do status quo, é a afirmação da necessidade de metanóia das instituições e do processo de pensar. A nostalgia pela tradição, pelo testemunho são uma reacção, são primeiramente uma contestação ao mundo fútil, que humilha o ser humano reduzido-o a material utilizável.

De facto a consciência humana não aceita viver muito tempo na contingência do acaso. Este exagero provoca uma procura instintiva de Deus atendendo a que a essência da pessoa está condicionada à procura do sentido. O eterno problema: de donde vimos e para onde vamos? A marca indelével da chamada à presenciacao do espírito acompanha sempre a pessoa na propulsão do espírito contra o niilismo redutor. As paróquias não poderão esperar uma revitalização da religiosidade popular. O aspecto folclórico é importante, mas a nova consciência humana latente na ciência e na religião exigem um salto qualitativo nas mentalidades e no comportamento e actuações das instituições; é urgente uma nova mentalidade. Esta não suportará a criação dum tipo de padres caixeiros viajantes a correr de paróquia para paróquia. Não se pode permitir que padres se reduzam a bombeiros. Nesse activismo despersonalizar-se-iam e despersonalizariam as comunidades reduzindo-as a entidades formais e não viveiros de vida. O ser humano do novo século, do novo milénio merece mais. Precisam-se menos funcionários – coveiros. Há falta é de parteiras.

A nova exigência corresponde a uma nova espiritualidade, a uma espiritualidade cristã, mais mística e menos grega. O espírito grego, assumido com a igreja de Constantino já chegou ao extremo na sua polaridade. Agora espera-se o advento da igreja mística. Deus não se encontra só na bíblia ou na religião; ele manifesta-se em tudo e em todos.
António Justo
Teólogo

António da Cunha Duarte Justo

Feminidade – o outro pólo da mesma realidade

Mulheres em Posições de Relevo

No teatro grego era proibido o acesso de mulheres ao palco. Os papéis de mulheres eram representados por homens mascarados. As mulheres não eram ouvidas e tinham de se tornar invisíveis. Esta realidade pode-se verificar ainda hoje, mesmo fisicamente, nas mulheres muçulmanas. A sociedade patriarcal (macho) não as deixava aparecer na arena pública. Sem direitos individuais eram excluídas do papel activo na liturgia. Uma injustiça, um débito que Cristo saldou. Na igreja primitiva as mulheres não ocupavam papéis secundários. A maneira como Ele convivia com elas era escandalosa para o espírito do tempo. Segundo Ele a religião, as instituições estão para o ser humano e não o ser humano para as instituições. E a dignidade do ser humano, também na qualidade de filhos de Deus, não está condicionada à feminidade ou masculinidade.

Não é legítimo que hábitos próprios duma cultura sejam sistematizados e assumidos definitivamente pelo cristianismo, que é universal e transcultural, o que não quer dizer renunciar à necessidade de processualmente se aculturar.

Naturalmente que a ideia de gerência, direcção não aparece no NT. Além disso quando a havia implicava um conceito diferente do de hoje. Nas comunidades da Igreja primitiva havia muitas comunidades dirigidas por mulheres. As epístolas de Paulo e os Actos dos Apóstolos fazem referência a muitas. Assim Paulo refere (Rom 16,1-16) 29 pessoas entre as quais se encontram 9 mulheres que exercem uma função apostólica e anunciam o evangelho, tal como os homens. Paulo começa a narração com Febe que era “diaconisa da Igreja de Cêncreas” nomeando outras que dirigiam comunidades ou se encontravam no trabalho missionário na qualidade de colaboradoras, colegas de Paulo. Também Júnia terá sido uma mulher e não um homem; além disso muitas vezes a palavra original diaconisa aparece traduzida por servidora.

É verdadeiramente triste que a mentalidade machista ultrapassada por Jesus tenha sido posteriormente reintroduzida no sentido masculino grego embora Paulo também a tivesse já superado. Apesar de passados 2.000 anos a igreja petrina encontra-se em débito para com a mulher.

Reino de Deus a mensagem de Jesus liberta o ser humano, mulher e homem das pressões sociais e de tabus. Ele chamou-as a segui-lo Mt 27,55;Mc15,40; Lc 8,13 e revelou-se a elas como Messias (Jo 4,1 26). A primeira testemunha da ressurreicao é uma mulher a quem Jesus aparece (Mc 16; ); ela foi comunicar a “notícia aos seus companheiros, que a não acreditaram”.

As mulheres sentiam-se muito bem na comunidade de Jesus atendendo a que na comunidade judaica não podiam assumir funções cúlticas. Assim assumem as funções de direcção nas novas comunidades fundadas. Paulo afirma neste espírito “já não há judeus nem gregos, já não há escravos e livre, já não há homens e mulheres, todos são um em Cristo”(Gal 3,28).

Elas são anunciadoras e apóstolas do Evangelho. Pertencem com Paulo aos que “combatem” pelo Evangelho aqueles que “se dão muito trabalho”. Eram chamadas de apóstolos, de “enviadas” tal como os seus colegas masculinos. Marcos, Mateus e Paulo designam de apóstolos os que viveram com Jesus ou tiveram uma experiência mística de encontro com Jesus depois da sua ressurreição.

O serviço do anúncio da Palavra era uma actividade missionária. Priscila e Aquila aparecem em diferentes comunidades

Havia mulheres na direcção das comunidades. Muitas vezes eram comunidades que se reuniam na casa duma para realizar o serviço litúrgico. Delas fazia parte a diácona Febe. A palavra diácono era usada na altura, fora da bíblia, para designar aqueles que desempenhavam funções responsáveis nas comunidades e entidades.

Febe já tinha a função duma directora de comunidade; Paulo chama-a “prostatis” que é uma matrona com função jurídica de protecção e intercessão. Entre outras que presidiam a comunidade era Lidia em Filipos (Act 16,14.40) e Ninfas em Laodiceia (Col 4,15) e outras como Maria (Act 12,12), Cloe (1cor 1,10) e Apia (Fil 1,2). Elas estavam no centro da liturgia. O contexto cultural e social das comunidades de então e de hoje naturalmente que são muito diferentes bem como a sua forma de organização.

Com a progressiva romanização e helenização das estruturas da Igreja foi restaurada a discriminação ministerial da mulher.

A organização como expressão social do tempo não deveria interferir tão massivamente no papel da mulher. O espírito grego era radicalmente depreciador da mulher e conseguiu-se infiltrar indevidamente em alguns sectores da estrutura eclesiástica. Naturalmente que o ser humano raramente consegue transpor o espírito do tempo encontrando-se, por vezes, subjugado a ele. Que a Igreja lhe tenha muitas vezes cedido torna-se compreensível. O que já ultrapassa a compreensão é o facto de hoje ainda haver tão pouca abertura para se começar a corrigir algumas carências do tempo. Naturalmente que um passo neste sentido significaria para Roma criar um buraco maior entre católicos e ortodoxos. Razões tácticas históricas condicionam demasiadamente o espírito a circunstâncias limitadas por aspectos culturais específicos.

Uma comunidade que fixe de antemão o papel das mulheres obriga a mulher a questionar-se sobre a comunidade. A pessoa não pode ser atada a um papel. Os tempos que correm oferecem a oportunidade à Igreja de proceder a um correctivo no sentido da igreja primitiva, no seguimento do espírito de Jesus. Jesus não se orientava pela feminidade ou masculinidade do ser humano. Este como ser completo comporta as duas. O homem para ser completo deve tentar integrar em si a a feminidade e a mulher para ser completa a masculinidade, sem perderem o seu específico. Ousemos presencializar também o futuro!

António Justo
Teólogo

António da Cunha Duarte Justo

À descoberta da feminidade…

Nas paróquias as mulheres podem organizar liturgias específicas para elas. Esta possibilidade é porém pouco praticada. A oferta de liturgias para mulheres é uma necessidade evidente, tal como para outros grupos.

As comunidades locais não dão resposta aferida às necessidades e às expectativas duma comunidade cada vez mais diferenciada.

A Comissão episcopal alemã, através da investigação Sinus-Milieu-Studie, constatou com inquietação que as paróquias apenas dão resposta a 4 dos 10 milieux existentes na sociedade, definidos pela sociologia.

Também muitas expectativas na liturgia não são correspondidas nem se encontram aferidas às necessidades hodiernas. Para isso pessoas e grupos terão que anunciar as suas necessidades nos locais que frequentam. Se as comunidades não perder a relevância social e humana que tinham em séculos passados, terão de dar resposta às necessidades hodiernas do ser humano a caminho, transformando-se em albergues do espírito, tal como os albergues surgidos para as necessidades corporais nos tempos medievais.

Hoje muitos grupos procuram sossego, estabilidade e confiança na religião esperando uma espiritualidade da experiência interior e o sentimento de pertença. Também as mulheres querem interferir e ser tomadas a sério como mulheres em situações concretas, querem o acesso feminino a Deus. Querem participar da missão de salvação da igreja na sociedade não só duma maneira subsidiária. Seria miopia criar entraves ao carisma feminino, à mulher.

Em muitas paróquias os párocos têm ainda uma linguagem e um agir demasiado masculinos não considerando a realidade feminina nas liturgias dominicais. Um argumento tipicamente macho poderá rezar: elas vão à igreja para rezar, para se encontrarem com Deus e não para seguir o padre; Deus está para lá do masculino e do feminino. Geralmente segue-se a inércia da rotina; o pároco preocupa-se apenas com a preparação, quando muito, da homilia e o conselho paroquial com as festas e aquisições.

Liturgia de mulheres para mulheres
As mulheres estão mais viradas para a troca de experiências sobre a sua vida religiosa, e a espiritualidade.

O Concílio do Vaticano II tentou com a sua exigência “partipatio actuosa” colocar uma perspectiva nova na liturgia da comunidade. Sugere uma celebração comunitária na multiplicidade de papéis litúrgicos.

O movimento da teologia feminina levou muitas mulheres a criar uma liturgia feminina. Esta está ligada a uma compreensão de teologia feminina (RadfordRuether e Elisabeth Schüssler Fiorenza, Mary Hunt e Diann Neu) baseada na libertação da mulher e na emancipação de mecanismos de submissão. Há a necessidade de se libertarem da dominância masculina e oficial.

A liturgia feminina obedece mais a critérios de partilha de autoridade e de divisão de tarefas. No seu agir não está só em vista o produto, o fim, mas ao mesmo tempo o processo, a caminhada. Há um equilíbrio e relação intrínseca entre processo e produto. Além disso, nessa liturgia está também presente a experiência da opressão como motivadora para a mudança e criação de estruturas mais justas na sociedade e na igreja.

Uma liturgia feminina é um serviço litúrgico de mulheres, com mulheres para mulheres.
Nela se tornam visíveis as fases e situações da vida da mulher. Aí experimentam Deus a partir da sua personalidade e experiência própria.

Tais liturgias partem do seu mundo: da vida aqui e agora. Elas querem viver afinadas com a vida na unidade de pensar, sentir e agir. O homem é mais dicotómico, mais dialéctico, normalmente chega-lhe o “orgasmo” intelectual ou parcial em qualquer outro sector da vida fora da visão do todo. Elas falam da experiência. Querem uma espiritualidade não só do espírito mas também do corpo.

A sua prontidão para participar activamente e o consequente empenho possibilita-lhes, através da vivência processual, o assumir a direcção da liturgia, mesmo para aquelas que parecem mais meditativas ou retraídas.

Tais celebrações só podem ser celebradas como liturgia da palavra atendendo que a ordenação ainda se continuar a limitar à parte masculina do ser humano. Elas realizam as liturgias por força da sua espiritualidade.

A existência de liturgias femininas não quer dizer concorrência com as outras celebrações litúrgicas. A experiência da vida e a sua espiritualidade certamente colaborarão para a renovação de muitas celebrações domingueiras demasiado formais.

A comunidade local terá que dispor dum grande leque de ofertas para poder dar resposta adequada à pluralidade de necessidades e de dons. Terá que haver espaço também para o secular especialmente no âmbito da arte e de expressões específicas. A comunidade paroquial terá que se tornar expressão da realidade humana no seu todo e no seu específico. Doutro modo desintegrar-se-á da vida deixando de dar impulsos à sociedade.

No encalço da feminidade, a grande chance de futuro
Uma nova consciência implicará a descoberta dos carismas femininos. Os seus carismas têm estado na reserva, debaixo do alqueire. A visão integral terá de incluir na realidade, a perspectiva feminina superando a visão unilateral polar masculina que até hoje domina intolerante. Não se trata de traduzir apenas o vocabulário masculino para o feminino, isso seria hipócrita. A nossa sociedade é de cima a baixo masculina. Talvez os transsexuais sejam um protesto, o sinal da necessidade da mudança, da integração da feminidade a nossa vida e nas estruturas sociais e de pensamento.

Então a linguagem de Deus terá uma expressão mais feminina na paróquia e a competência social aumentará. Os serviços litúrgicos institucionalizados tornar-se-ão mais vivos, mais vida e menos desobriga. Vai sendo tempo da instituição acordar do sono da Bela Adormecida. A maternidade de Deus ainda soa estranha para uma mentalidade que abusa e padece do abuso do pólo masculino.

A necessidade da reestruturação da Igreja é evidente: a necessidade cria o órgão! …

António Justo
Teólogo
“Pegadas do tempo”

António da Cunha Duarte Justo

Espiritualidade Feminina

A espiritualidade tem um rosto humano com diferentes concretizações e expressões dependendo estas do sexo, da idade e do carácter de cada um. Na época em que vivemos já não há uma experiência religiosa familiar comum o que torna mais difícil a frequência duma liturgia dominical comum. Duma maneira geral também não há a oferta de celebrações específicas para mulheres. As comunidades que, além das celebrações dominicais para a generalidade não oferecem liturgias da palavra específicas às várias espiritualidades da região nde estão implantadas perdem a oportunidade de dar resposta às novas necessidades das pessoas e de possibilitar futuro à comunidade. As destinatárias femininas não têm sido consideradas. Não se trata aqui de reactivarmos a discussão feminista dos anos 80 e 90 marcada ela mesma por estratégias e critérios machistas. Aqui trata-se de dar resposta ao Homem todo na sua masculinidade e feminidade, criando lugares específicos onde a masculinidade e a feminidade possam ter formas de expressão mais adequadas à mulher.
A liturgia católica é mais feminina que a evangélica. Esta porém é mais versátil na resposta às necessidades de milieu. Cada vez será mais difícil criar liturgias para a generalidade atendendo a que cada vez aparecem mais biótopos na sociedade, estes correspondem a formas de vida alternativas, mentalidades e espiritualidades que a igreja como católica deverá dar resposta abrindo os seus espaços nesse sentido. A falta de liturgias específicas conduz pouco a pouco ao afastamento físico ou psíquico do meio. As famílias com crianças até aos doze anos procuram e fomentam certas actividades de grande densidade criativa. D Tornamo-nos resistentes à voz interior a luz da chama em nós. Depois surgem outras necessidades, não tanto funcionais, já mais relativas à necessidade própria de orientação e sentido. O mesmo se diga a grupos de artistas, etc. Aqui abrem-se grandes perspectivas para as potencialidades e necessidades latentes nas populações e para uma pastoral situada na realidade envolvente.

A mulher, mais próxima da vida, quer relacionar as experiências da própria vida com a fé. Não separa, como o homem, o mundo em vários sectores por vezes estanques. Ela quer levar a vida para a igreja e trazer a igreja para a vida. (O amor não se manifesta só na cama!…).

Não se trata de ir encher o depósito como se vai às bombas da gasolina mas duma vida integral. Esta não é centrada na cabeça mas no coração, na palavra, não virada para lá das nuvens mas bem assente na terra. A sua espiritualidade tem uma expressão corporal importante.

As paróquias não dão resposta as exigências hodiernas por transcendência e espiritualidade e teimam, também por escassez de pessoal activo, continuar no entorpecimento ordinário. A falta da vivência, uma linguagem de imagens quase demasiado masculinas Deus é também maternal e não só paternal. Para a uma mentalidade masculina encardida basta muitas vezes um argumento intelectual, longe da realidade, para justificar o seu agir. Para um Deus pai e mãe isto insuficiente!

Na Bíblia encontramos diferentes imagens de Deus além de pai e mãe: a mãe águia (Dt 32,11-12); a mãe urso (Os 13,8), a que dá à luz Is (42,14), a parturiente (Is 66,7) a padeira (Mt 13,33), fogo (Ex 13,21), vento (1 Cor 9,11), chuva (Sl 68,9), água (Ez 16,9). Sob cada imagem esconde-se uma experiência de Deus própria.
António Justo
Teólogo
“Pegadas do Tempo”

António da Cunha Duarte Justo