O QUE NÃO SE FALA NÃO EXISTE!

Pois é, meus caros, que bela notícia!

Afinal de contas, a injustiça e a pobreza já são problemas ultrapassados, resolvemos não falar mais deles, e, como bem se sabe, o que não se fala não existe.

Agora, o verdadeiro progresso está em rearmar a Europa! Que alívio saber que os 800 mil milhões de euros que a UE planeia gastar em defesa nos próximos anos vão certamente tornar-nos todos mais seguros… principalmente contra a ameaça terrível de idosos sobreviverem com 250 euros por mês ou pensionistas portugueses que ousam receber pensões de até 500 euros. Em Portugal em 2024 havia 1,4 milhões de pensionistas que  recebiam uma pensão de velhice de até 500 euros, o que representava quase metade dos pensionistas da Segurança Social.

É claro que faz todo o sentido que Portugal gaste 6.256 milhões de euros em defesa até 2029, afinal, quem precisa de reformas decentes, serviços públicos que funcionem ou apoio social quando podemos ter mísseis mais modernos e tanques reluzentes?

O importante é manter as prioridades em ordem: primeiro, enchemos os arsenais; depois, talvez, se sobrar algum trocado, lembramos que há pessoas a viver na miséria.

Mas calma, não sejamos dramáticos! Afinal, o que é a pobreza perante a grandiosa estratégia geopolítica europeia?

Sigam em frente e não se esqueçam de apertar o cinto… mas só até 2029. Em compensação, sentimo-nos bem-comportados e esforçados em cumprir as estratégias de Trump em relação à NATO! Isso dá mais honra e lustro aos nossos engravatados quando se passeiam em Bruxelas!

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

A ENCRUZILHADA DO OCIDENTE ENTRE EMOTIVIDADE PODER E A CRISE AXIAL DA HISTÓRIA

A Eurásia é o palco crucial que servirá de ponte entre Oriente e Ocidente

Vivemos um daqueles raros momentos da história em que a ordem mundial não se limita a adaptar-se, mas sofre uma transformação fundamental. Trata-se de uma crise de eixo – um ponto de viragem épico, no qual as estruturas de poder, os modelos económicos e as grandes narrativas civilizacionais são abalados. O Ocidente, outrora arquiteto incontestado da ordem global, permanece hoje numa espécie de paralisia emocional e estratégica – e, com isso, promove involuntariamente exatamente o mundo multipolar que procura impedir.

A Ascensão da Irracionalidade e a Falência das Elites

O mal-estar ocidental não é apenas de natureza económica ou geopolítica; é, acima de tudo, uma crise da razão e da cultura. As elites dominantes, alienadas do povo e do desenvolvimento orgânico e qualitativo do indivíduo e da sociedade, abandonaram os padrões da razão, da ponderação crítica e do espírito de cooperação e complementaridade. A liderança sóbria foi substituída por uma emocionalização perigosa e tóxica da comunidade.

Esta estratégia, que recorre a instintos sociais baixos, é um sintoma de pânico. As elites, movidas pelo medo de perderem o controlo da narrativa e o seu lugar privilegiado, intoxicam o espaço público. Isso resulta numa sociedade hipersensível e depressiva, incapaz de compreender as causas profundas da sua miséria e que se contenta em lamentar as suas consequências. O caso alemão é paradigmático: enquanto se desviam verbas incomensuráveis para a guerra e se acumula dívida nacional, as desigualdades sociais que atingem brutalmente idosos e jovens são ignoradas. O discurso público, em vez de tematizar estas opções, prefere o conforto da emoção.

O Palco Geopolítico: A Revolução Multipolar

Esta convulsão interna coincide com uma mudança histórica de proporções épicas. Talvez seja comparável à transição do feudalismo para o capitalismo nos séculos XV e XVI.

O capitalismo, fruto da revolução industrial, foi durante muito tempo um projeto exclusivamente ocidental. Hoje, porém, o Sul Global despertou do seu «sono medieval». Os países do BRICS – Brasil, Rússia, Índia, China, África do Sul e outros – estão a reformular as suas economias, sob o signo do capitalismo estatal. Este modelo, apesar das suas contradições, prova-se formidável na concorrência com o capitalismo ocidental de carácter fundamentalmente privado e financeirizado. O subsídio ocidental ao capitalismo liberal turbo não só enfraquece a espinha dorsal de uma classe média saudável, como também favorece formas artificiais de empresas, cujo único fundamento é o próprio capital. Nesta situação paradoxal, as elites destroem a sua própria base para satisfazer as exigências do sistema que elas mesmas criaram noutras paragens. Nesta situação as nossas elites autodestroem-se para conseguirem dar resposta ao sistema que impuseram ao submundo.

Perante este desafio, a resposta anglo-saxónica (EUA/UK) e europeia, canalizada através da NATO, não é de adaptação, mas de renitência e confronto. Em vez de reconhecerem os sinais dos tempos e buscarem uma colaboração Norte-Sul, agarram-se a velhas doutrinas belicosas da Guerra Fria. A insistência em ver o mundo através da lógica do “amigo-inimigo” e a camuflagem de interesses imperialistas sob o pretexto de “defesa de valores” só consegue uma coisa: fomentar a afirmação do mundo rival em termos de rivalidade, e não de colaboração.

A Esquerda Europeia: Perdida entre o Verde e a Guerra

A esquerda europeia, outrora garantidora de uma política social e humanista, perdeu a sua bússola; o centro político tem receio de revelar as suas próprias raízes. O caso do SPD alemão é sintomático: a sua associação à ideologização verde prejudicou a sua imagem de partido anchor da justiça social.

O movimento ecológico, originalmente com raízes locais e pacifista, também foi cooptado e transformado numa força moralmente belicista da geopolítica. Esta «ecologização» da política, longe de salvar a natureza, tornou-se um instrumento de emocionalização que cega ainda mais a sociedade. A esquerda, dependente desta agenda, tornou-se num parceiro involuntário de políticas que negam o seu próprio projecto de justiça social e paz.

A direita, por sua vez, perdeu a sua firmeza ao abandonar os seus fundamentos culturais. Seduzida pelas tentações da globalização liberal, escolheu o caminho da agressão em vez da cooperação entre os povos.

A União Europeia faz parte da Eurásia e se considerarmos o tempo em épocas, e não em períodos eleitorais de quatro anos, teremos que concluir que a Eurásia é o palco crucial que servirá de ponte entre Oriente e Ocidente.

A Única Saída é a Razão e a Colaboração

O surgimento de figuras como Trump nos EUA não é a causa, mas sim um sintoma deste processo histórico em curso acelerado. São as dores de uma transição inevitável para um mundo multipolar.

O Ocidente tem apenas uma saída: afastar-se da mera emocionalidade e voltar à razão e ao senso comum político:

– Reconhecer a nova constelação de poder e negociar com o Sul Global de igual para igual.

– Abandonar a doutrina do confronto da NATO em favor da diplomacia e da cooperação económica.

– Reafirmar um discurso público objectivo, onde os media e os partidos priorizem o bom senso sobre a histeria.

– Reencontrar uma esquerda que volte a tematizar as causas da desigualdade sem abandonar o humanismo cristão, em vez de se limitar a gerir as suas consequências da desigualdade com emotividade.

A crise do eixo não marca um fim, mas sim um doloroso recomeço. O Ocidente pode revelar-se um obstáculo obstinado e, assim, acelerar o seu próprio declínio – ou pode redescobrir a razão e encontrar o seu lugar num mundo que já não é exclusivamente seu, mas que pode ser mais justo e equilibrado para todos. A depressão das sociedades ocidentais é o reflexo da doença das suas elites. A cura começa com a coragem de pensar com clareza.

A União Europeia faz parte da Eurásia. E se não medirmos o tempo em mandatos eleitorais de quatro anos, mas em épocas, então temos de concluir: a Eurásia é o palco decisivo que se torna a ponte entre o Oriente e o Ocidente.

 

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

O ATLAS DE FUMO E O FIO DE OURO

Introdução: A Biblioteca das Épocas (1)

Na vastidão do não-tempo, onde as épocas se dissolvem em névoa e os mapas do mundo se redesenham a cada expiração do cosmos, existia uma biblioteca infinita. Não era feita de pedra ou madeira, mas do próprio tecido da memória humana. As suas estantes, labirínticas, guardavam não livros, mas painéis luminosos onde cintilavam as constelações de ideias, paixões e ambições de cada época. Era o reino do pai do tempo Cronos (2), o velho Tecedor, um ser de aparência serena, mas com olhos que reflectiam a fadiga de milénios. Ele não era um deus, mas um arquivista, o Narrador silencioso da história. Tinha entre mãos um tear dourado onde tentava entrelaçar os fios caóticos do destino humano num padrão coerente.

Os seus dois principais assistentes, ou antagonistas, eram Dogma e Providência.

Dogma era um homem de rosto anguloso e vestes impecáveis, sempre carregando uma bússola de aço e um livro das regras da sustentabilidade. Acreditava que o painel do Ocidente, aquele erguido após a última grande convulsão, a que chamaram Renascimento e depois Iluminismo, era a obra final, perfeita e inalterável até aos finais dos tempos. Para ele, a luz daquela constelação, embora já pálida, era a única verdadeira a brilhar no céu de Bruxelas. Uma luz teimosa, sustentada por combustíveis grosseiros, guardados em tanques enferrujados.

Providência, por sua vez, era uma figura etérea, de olhos que pareciam ver não o que é, mas o que poderia ser. Usava um manto bordado com os símbolos de todos os povos e sussurrava sobre conexões, complementaridades e um novo painel a surgir do Sul, mais colorido e complexo. Era a voz da intuição racional, do bom senso que vê além do horizonte imediato.

E havia Caos (o espaço vazio, abismo (3), a força primordial que Dogma mais temia. Não era uma pessoa, mas uma energia turbulenta que emanava dos painéis: a emotividade irracional, o medo, o ódio tribal que fermentava nas sociedades quando se sentiam perdidas.

(O mundo da História encontrava-se assim dividido em painéis representados em várias áreas da biblioteca)

O Painel Ocidental e as Fendas

O painel do Ocidente brilhava intensamente. Nele, via-se a catedral do poder: torres de marfim onde as elites, representadas por uma figura etérea e arrogante chamada O Inquisidor (4), admiravam a sua própria obra. Tinham construído um sistema engenhoso, um capitalismo de tipo bússola e privilégio privado. Mas, como notava Cronos com um suspiro, tinham cometido o erro fatal: confundiam o seu painel com o universo inteiro.

“O padrão está completo!” proclamava Dogma, ajustando o compasso. “Todos os outros painéis devem calibrar-se pelo nosso. E para nós os valores válidos são os da nossa Constituição”.

Porém, o Tecedor apontava para as rachaduras. O brilho intenso do painel não iluminava os seus cantos mais sombrios: os desfavorecidos, os idosos e os jovens, representados por uma figura colectiva e cansada, O Povo, que, na penumbra, viam os fios dourados da sua prosperidade serem desviados para alimentar uma grande forja de armas reluzentes e magnates globais, fora do painel. O Povo não entendia os desígnios do Inquisidor; sentia apenas um frio crescente e uma ansiedade surda, um mal-estar que era o combustível de Caos.

O Inquisidor, sentindo o controlo a escapar, não apelava à razão. Em vez disso, sussurrava para o painel. Murmurava medos antigos, alimentava suspeitas, pintava o mundo exterior de cores ameaçadoras. Era mais fácil unir O Povo pelo temor do que pela esperança. A emotividade, como um vinho forte, entorpecia a capacidade de questionar.

O Novo Mosaico e a Renitência

Enquanto isso se dava, noutra ala da biblioteca, um novo painel ganhava forma. Era um mosaico vibrante de cores terrosas, verdes luxuriantes e azuis profundos: O Sul Global. Não seguia o mesmo desenho. As suas torres não eram de marfim, mas de bambu e aço, erguidas por mãos estatais e colectivas. Era um capitalismo diferente, menos privado, mais comunitário na sua origem, unido por fios de tradição e soberania que o Ocidente julgara obsoletos.

Providência observava, fascinada. “Vê, Cronos? É a mesma transição que ocorreu quando o feudalismo deu lugar aos nossos reinos comerciais. É a História a repetir a sua dança, noutro palco.”

Dogma, contudo, olhava para aquele painel e não via inovação, viu apenas uma heresia. “Eles não seguem as regras! O compasso não se aplica nem tem sentido! É uma afronta à nossa constelação!”.

O Inquisidor, ecoando Dogma, começou a gritar. Em vez de buscar dialogar com o novo mosaico, começou a apontar para ele as suas armas reluzentes, a tentar cercá-lo com um anel de fogo. A renitência em aceitar a mudança tornou-se a própria semente do conflito. A NATO, nessa narrativa, era o seu exército de sombras, a tentar conter a maré com velhos mapas.

A Torre de Babel da Esquerda e o Profeta

No próprio painel ocidental, uma guerra silenciosa corroía a base. O Centro da polis temia que os ventos fortes vindos da direta lhe desabrigassem as raízes. A Esquerda, que outrora pretendia ser a voz de O Povo, estava dividida. Dois grupos lutavam. Os Jacobinos Verdes, discípulos involuntários do Inquisidor, tinham trocado o vermelho pelo verde escuro num pacto de poder. A sua ecologia tornara-se dogmática, belicista e distante das necessidades terrenas de O Povo. Eram a ala moralizadora e emocional, úteis ao Inquisidor para manter a narrativa de medo.

Do outro lado, uma voz mais calma, mas persistente tentava fazer-se ouvir. Era O Profeta, não um adivinho, mas um pragmático com alma. Representava aqueles que viam a loucura do momento. “Não podemos defender O Povo fomentando o seu medo!” clamava. “Precisamos de um meio termo, de uma razão integral que una a justiça social à pragmática colaboração com o novo mosaico. A nossa luta não é contra o Sul, é contra a injustiça de uma desigualdade que nos consome por dentro!”

Mas a sua voz era abafada pelo ruído ensurdecedor de Caos, amplificado pelo Inquisidor e pelos Jacobinos Verdes.

O Grande Tear Eurasiático

Cronos, o Narrador, cansado da cacofonia, decidiu agir. Não com força, mas com lembrança. Ele projectou uma visão sobre os painéis em conflito.

Era a imagem de um Grande Tear Eurasiático. Mostrava a Rússia não como um inimigo, mas como uma ponte vasta e antiga entre a Europa e a Ásia. Mostrava rotas não de invasão, mas de comércio, de cultura, de energia e de ideias fluindo de Lisboa a Xangai, unindo províncias e continentes num novo padrão.

“Olhem”, sussurrou Cronos, sendo a sua voz pela primeira vez audível para todos. “O espírito do Renascimento não era de isolamento, era de redescoberta através do encontro. A mesma coragem que vos fez navegar para ocidente é necessária agora para navegar para oriente, não com naus de guerra, mas com a ânsia de aprender e colaborar. O mundo virtual que criaram pode ser esta nova rota da seda, se o desejarem.”

O Povo, intoxicado pelo medo, começou a esfregar os olhos. A visão era estranha, mas fazia um sentido profundo que a emotividade do Inquisidor nunca lhe proporcionara.

O Fio de Ouro

A batalha não terminou. Dogma e o Inquisidor ainda gritam e Caos ainda sussurra.

Mas a visão plantou uma semente. O Profeta encontrou ouvidos mais atentos. Providência sorriu, vendo que o novo painel do Sul (propriamente formatado pela Europa) não pretendia apagar o Ocidental, mas sim conectá-lo, oferecendo-lhe novas cores para o seu padrão.

Cronos voltou ao seu tear. Entre todos os fios de prata do poder, de ouro do capital, de carmesim da paixão e de sombra do medo, ele começou a entrelaçar um novo fio, que era fino, mas incrivelmente resistente. Era um fio de razão serena, de bom senso histórico, de colaboração necessária.

Era o fio que O Profeta defendia, o fio que O Povo instintivamente desejava, o fio que poderia costurar os pedaços do atlas partido num novo mapa, não de um mundo unificado sob um único dogma, mas de um mundo multipolar, unido pela aceitação da sua própria diversidade e pelo desejo final de um destino comum.

A história, afinal, não se repetia como uma tragédia ou uma farsa, mas como uma oportunidade de correcção. A crise axial era, assim, o doloroso e necessário parto de uma consciência nova. (Teilhard de Chardin resumiria: o despertar de uma consciência cósmica na convergência de todo o mundo para o Ponto Ómega!

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

 

(1) Uma macro análise da encruzilhada da História

(1) Cronos, o pai do tempo, um dos Titãs da mitologia grega, filho de Urano (o céu) e Gaia (a terra), conhecido por destronar seu pai e tornar-se o rei dos deuses, governando durante a chamada Idade de Ouro.

(2) Khaos (ou Caos), na mitologia grega, é a primeira entidade primordial a surgir no universo, o espaço vazio e primordial do qual tudo se originou, segundo a obra do poeta Hesíodo. O termo significa “abismo”, “vazio” ou “imensidão”, e Khaos é uma força que gera o cosmos por meio da cisão, sendo o oposto de Eros, que representa a união. De Khaos, surgiram outras divindades primordiais como Gaia (a Terra), Érebo (a Escuridão) e Nix (a Noite).

(3) Livro 1984 de George Orwell critica o totalitarismo e a manipulação da verdade, algo que começou a ficar em evidência após a Segunda Guerra Mundial (vigilância em massa e da lavagem cerebral na sociedade).

PEGADAS DO TEMPO

Não sou só um núcleo, um simples ser,
Sou um verso que o mundo veio escrever.
Antes do berro, no silêncio uterino,
Jazia o fado, um destino divino.

O tempo-espaço, primeira masmorra,
Que liberta a alma e a segura por fora.
Dois seres, um laço, um íntimo desvelo,
Plantaram em mim o futuro no efémero.

Depois veio o mundo, com seus muitos braços,
Normas, culturas, risos e embaraços.
A educação, tecedora de grilhões,
Moldou meus contornos, cosendo opiniões.

Sou Geografia, sou História e Arte,
Sou um mapa de sinais a abrir-se em parte.
Sou Filosofia, sou Política e Mística,
Uma teia de campos que me classifica.

Leio os sinais de trânsito do enquadramento,
As barreiras do corpo, do social lamento.
E aprendi que não basta a inteligência pura,
É preciso esperteza na seara escura.

Para ser a onda que do mar se ergueu,
A rosa única que o jardim teceu.
Há uma tensão no que é tido por normal,
No aceitável, no posto no jornal.

Quem questiona, na margem fica,
Mas sem margem, o centro nada significa.
É no conflito, por mais que doa,
Que a vida avança, que a alma brota e voa.

Não se confunda a Alma com a paisagem,
Não se reduza o Eu a uma miragem.
Que o Ego sozinho é grão de areia fina,
Que o vento leva e nada determina.

A verdadeira essência, sabedoria antiga,
É partir do Eu, mas rumo ao divino
Do Nós, da comunidade, do chão compartilhado,
Onde o ser é Pessoa, em amor entrelaçado.

E assim se forma, na luz e na sombra,
A Pegada do Tempo que me assombra.
Sou eu mesmo e o outro, circunstância e vontade,
Na vastidão do ser, buscando a liberdade.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

 

 

CONCÍLIO DO GALINHEIRO DOURADO

Uma Fábula geopolítica sobre a Farsa da Ambição no Ninho da Águia e no Galinheiro Dourado

No alto do Monte Olimpo de Bruxelas, onde o nevoeiro é feito de diretivas e o trovão do discurso político ecoa nos salões de mármore, os deuses menores agitavam-se. A notícia chegara como um raio: a grande Águia-de-cabeça-branca, do outro lado do oceano, mudara de humor. O seu piar, outrora beligerante e estridente, agora papagueava palavras estranhas: “paz”, “negociação”, “fim de hostilidades”.

Isto deixou os deuses do Olimpo em desarmonia total. Durante luas, tinham dançado ao ritmo guerreiro da Águia, martelando armas no seu Monte em vez de pão, tecendo para o povo narrativas de demónios e heróis com o ouro que lhes era enviado. O Galo Gaulês, vaidoso e orgulhoso, e a Águia Negra Federal, pragmática e calculista, haviam-se convencido de que a sua sobrevivência dependia daquela guerra distante, na grande planície do Urso Pardo. Nesse sentido camuflaram os seus interesses com os desígnios da Cegonha (1) que sempre acompanhavam e controlavam.

A mudança da Águia-branca forçou a convocação de um concílio. Mas não no grande salão do Olimpo, onde todos os estados-deuses tinham assento. Não. Foi num anexo reluzente, um Galinheiro Dourado, que a Deusa dos Protocolos, uma figura etérea de suave cinzento e gravata invisível, a tal que substituíra o acomodado Lobo Ibérico do Gerês na condução dos destinos comuns, reuniu os escolhidos.

Estavam lá, entre outros, o Galo Gaulês e a Águia Negra, como é claro. O Leão Britânico, já fora da cerca do galinheiro, mas ainda a rugir à porta, observava. Mas, a final de contas,  onde estava o Veadinho Vermelho, que sempre alertara para a insensatez do conflito? Onde estava a Águia-rabalva, feroz e diretamente na linha de fogo? E que era feito do Lince Romeno, guardião de outra fronteira? Foram deixados do lado de fora, a cacarejar a sua inquietação de ignorados. O concílio não era para vozes dissonantes, era para consolidar a narrativa.

A missão era clara: voarem juntos até ao novo ninho da Águia-branca e convencê-la, com ar de subserviência, mas punhos cerrados de determinação, a não abandonar a guerra. A Deusa dos Protocolos lideraria a comitiva. O Lobo Ibérico do Gerês, que representava a vontade coletiva de todos os deuses do galinheiro, foi convenientemente esquecido. Aquele não era um assunto de vontade coletiva, era um assunto de interesse coletivo, mas apenas daqueles que se julgavam colectivamente donos do colectivo.

A cena no novo ninho da Águia-branca foi de um ridículo sublime. Lá estavam eles, o Galo e a Águia Negra, plumagens bem penteadas, rodeando o trono da grande Águia-branca, que os observava com um ar entre o enfastiado e o divertido. Pareciam pintos ansiosos por migalhas de aprovação, cacarejando em uníssono a velha cantiga: “O Urso é um demónio, a guerra é necessária, não podemos fraquejar”.

A Águia-branca ouviu, bicou algumas sementes, e piou algo vago sobre “paz através da força”e “razões económicas”. Eles regressaram ao Olimpo, pavoneando-se como se tivessem obtido uma vitória colossal. Mas nos seus olhos lia-se o vazio de quem sabe que se humilhou por uma migalha de relevância.

Enquanto isto se dava, nas planícies da Ucrânia, os verdadeiros animais, os homens, continuavam a ser alimento para a terra, que já não acreditava em deuses de Bruxelas ou de Washington. O Urso Pardo, longe de ser o demónio desenhado nos mosaicos do Olimpo, estava sentado à sua mesa, pacientemente, oferecendo garantias que ninguém no Galinheiro Dourado queria ouvir. Porque ouvir significaria negociar, e negociar significaria admitir que a realidade não era o conto de fadas heroico que tinham vendido aos seus povos.

A grande farsa foi revelada. A União, que poderia ter sido uma fénix a renascer das cinzas da sua própria dependência, escolheu ser um papagaio, repetindo slogans gastos de um mestre que já nem os acreditava. Apostaram tudo no “tudo ou nada” e, no fim, quem tudo arrisca, tudo perde. E a factura, como sempre, estava a ser paga nos campos de trigo encharcados de sangue, longe do mármore limpo do Monte Olimpo.

O verdadeiro desafio nunca foi o Urso, nem a Águia volúvel. O desafio sempre foi olharem-se ao espelho e verem, não os deuses benevolentes que julgavam ser, mas apenas galos e águias menores, presos no seu próprio galinheiro dourado, escorregando no resíduo pegajoso da sua própria miragem. (Interpretação do conto em nota 2)

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

(1) Esta fábula geopolítica usa como símbolos e alegorias os animais: Águia-de-cabeça-branca (Estados Unidos), Cegonha (Ucrânia), Urso-pardo (Rússia), águia negra ou federal (Alemanha), o galo gaulês (França), o Leão (Inglaterra), Veado-vermelho (Hungria), Águia-rabalva (Polónia), Lince (Roménia), Lobo-italiano (Itália). O lobo ibérico do Gerês (António Costa presidente do Conselho Europeu, dos Estados-membros, ausente). A Deusa dos Protocolos ( Von der Leyen – Presidente da Comissão,  apenas representante dos comissários).

(2) O “Galinheiro Dourado” representa a Comissão Europeia (Von der Leyen) e o eixo Franco-Alemão. É “dourado” por fora (a ideia de Europa) mas é um “galinheiro” por dentro (desorganização, cacarejo, hierarquias rígidas). A exclusão dos países vizinhos da Rússia e da Ucrânia (Veadinho, Águia-rabalva, Lince) reflete a sua queixa sobre a reunião real.

A Mudança da Águia-de-cabeça-branca (EUA/Trump) é o catalisador da história. Mostra a dependência europeia e a sua incapacidade de ter uma política externa independente e estratégica.

A “Deusa dos Protocolos” (Von der Leyen) é uma crítica direta à sua presença inadequada na reunião com Trump, em detrimento de quem realmente representa os estados (Costa, como Lobo Ibérico). Ela é “etérea”, não eleita diretamente, e impõe protocolos que servem a uns e ignoram outros.

Humilhação e a Subserviência: A cena em que se humilham perante Trump é central, mostrando a contradição entre o ódio que professam e a submissão que praticam.

O Urso Pardo (Rússia/Putin) é aqui retratado não como um demónio, mas como um actor pragmático e paciente, contrastando com a histeria e a narrativa fabricada do Olimpo. Isto reflecte a ideia de que a Rússia está aberta a negociações e que a demonização é uma estratégia.

O conto culmina na ideia de que a UE está a escorregar na sua própria miragem, presa numa narrativa infantilizada que a impede de ver o mundo real e de agir pelos seus genuínos interesses de paz e prosperidade com a sua vizinhança euro-asiática.