A LUZ INTERIOR COMO FORMA DE LIBERDADE

Santa Luzia e a resistência da consciência face às ideologias do tempo

Cada época observa o mundo através dos seus próprios óculos. Mudam as linguagens, os contextos e as estruturas, mas certos padrões repetem-se ao longo dos séculos. A história humana revela sinais recorrentes que exigem discernimento: compreender a presente passa, muitas vezes, por interpretar o passado também à luz do agora sem se deixar diluir no aspeto folclórico. Para isso importa interpretar a Tradição como linguagem da liberdade

Em Portugal, as festas de Santa Luzia (Santa Lúcia) são amplamente difundidas e enraizadas na tradição popular. Na Escandinávia, porém, a sua veneração assume uma dimensão particularmente expressiva. No dia 13 de dezembro, não só católicos, mas também comunidades inteiras celebram Santa Luzia de Siracusa com procissões de túnicas brancas e coroas de luzes. Este gesto simples carrega uma memória profunda: a de uma mulher do século III que se recusou a ser subjugada.

O nome Luzia significa “a Brilhante”. Não se trata de uma luz exterior, decorativa ou imposta, mas de uma força que brota do interior. Num mundo que reduzia as mulheres à condição de propriedade, ao casamento obrigatório e ao silêncio social, Luzia rompeu com a ordem estabelecida. Escolheu a fé, a liberdade interior e a autodeterminação. A sua vida foi um ato de resistência.

Santa Luzia é venerada como padroeira da visão e protetora contra a cegueira e as doenças dos olhos. Simboliza a fé, a pureza e o martírio, mas também algo mais profundo: a capacidade de ver para além das trevas. Ao descobrir a luz de Cristo em si mesma, tornou-se portadora dessa luz para o mundo. A tradição que fala da mutilação dos seus olhos, como forma extrema de resistir à tentação de renegar a fé, culmina simbolicamente na restituição de novos olhos, sinal de uma visão renovada, interior e espiritual.

Esta narrativa interpela-nos hoje. Há, no nosso tempo, tentativas subtis e persistentes de retirar às pessoas a sua fé, não apenas a fé religiosa, mas a fé interior, a confiança na própria consciência e na liberdade espiritual. Quem detém o poder sabe que um povo sem fé própria se torna facilmente manipulável, sujeito à ideologia dominante e à imposição de narrativas únicas.

Lúcia não cedeu e declarou com firmeza: “Adoro um só Deus verdadeiro, e a Ele prometi amor e fidelidade.”
Por essa fidelidade, foi decapitada a 13 de dezembro de 304.

As coroas de luzes usadas nas celebrações de Santa Luzia, também presentes no tempo do Advento, não são meros adornos folclóricos. Elas preservam uma mensagem essencial: a verdadeira luz não vem apenas de fora. É transportada por Luzia, por todo o cristão consciente e por toda a pessoa desperta para a sua dignidade interior. A auréola luminosa simboliza o a autoconsciência e poder pessoal, a orientação enraizada na fé e a independência de espírito.

Santa Lúcia ensina-nos que a fé autêntica rompe com a injustiça. Convida-nos a defender a liberdade onde quer que ela seja ameaçada, especialmente nos contextos em que mulheres e outros grupos continuam a ser controlados, silenciados ou oprimidos.

No tempo do Advento, somos chamados a despertar. A resistir às trevas, mesmo quando somos lançados, como uma frágil luz de inverno, num mundo que insiste em espalhar o frio, o medo e a escuridão. A luz, porém, permanece. E quando nasce de dentro, nenhuma força exterior a pode apagar. A fé pessoal é a luz que ninguém pode apagar. Ela é a última fronteira da Liberdade; a luz interior e a fé pessoal são a melhor defesa cultural da liberdade (por isso quer o poder autoritário, quer até o democrático procuram assenhorear-se das consciências individuais apresentando-se eles como os portadores da liberdade).

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

A NOVA BARREIRA ALFANDEGÁRIA DA UE

Protecionismo, Receita fiscal ou uma Medida contra a China?

Num movimento que marca uma viragem significativa na política comercial europeia, os Estados-Membros da União Europeia aprovaram a imposição de taxas alfandegárias sobre todas as importações, incluindo pequenas encomendas com valor inferior a 150€. A partir de julho de 2026, estas encomendas, até agora isentas, estarão sujeitas a uma taxa fixa de 3€. A medida, justificada pela Comissão Europeia como uma forma de nivelar o campo de jogo perante a avalanche de importações baratas, gera um intenso debate. Para muitos, é um passo necessário para proteger a economia europeia; para outros, representa mais uma forma de o Estado “encher os seus próprios bolsos” sob o pretexto de medidas contra a China.

O Fim de uma Era: A Isenção dos 150€
Desde há décadas, o limiar dos 150€ funcionou como um estímulo ao comércio internacional de baixo valor, permitindo aos consumidores europeus com menos recursos adquirir bens de todo o mundo sem burocracia ou custos adicionais. Esta isenção foi, no entanto, corroída pela explosão do e-commerce transcontinental, particularmente com a ascensão de gigantes baseados na China como Shein, Temu e AliExpress. Estas plataformas, com seus modelos de negócio baseados em volumes astronómicos de pequenas encomendas diretas ao consumidor, dominam agora o fluxo de bens de baixo custo para a UE. A Comissão Europeia estima que, só em 2024, 12 milhões de encomendas cheguem diariamente ao espaço comunitário, um número que pressiona os sistemas logísticos e alfandegários e que, argumenta Bruxelas, distorce a concorrência com os retalhistas europeus.

Objetivos Declarados e Críticas
Os proponentes da medida defendem-na com três argumentos principais:

– Equidade no Mercado: Acabar com a vantagem competitiva “injusta” de retalhistas não-europeus que não cumprem as mesmas regras fiscais, ambientais ou laborais.

– Nivelamento Fiscal: Combater a evasão do IVA, garantindo que todas as encomendas contribuem para as receitas dos Estados-Membros.

– Financiamento da Maquinaria Aduaneira: A taxa fixa de 3€ ajudará a financiar os custos operacionais crescentes do controlo aduaneiro desta miríade de pequenas encomendas.

No entanto, a medida é alvo de veemente crítica. Os governos usam o pretexto geopolítico e de “proteção do mercado único” para aumentar a receita fiscal à custa do consumidor comum. A taxa de 3€ sobre uma encomenda de 5€ ou 10€ representa um acréscimo percentual brutal, funcionando efetivamente como um imposto regressivo que pesa mais sobre as famílias com menos recursos.

Impacto em Cadeia: Consumidores, Plataformas e a Logística
As consequências serão vastas:

– Para o Consumidor: O fim da “pechincha” verdadeiramente global. O preço final dos artigos baratos aumentará substancialmente, podendo reduzir o poder de compra e a variedade de escolha.

– Para as Plataformas Online (Shein, Temu, AliExpress): O seu modelo de negócio, assente em margens baixíssimas e volume extremo, enfrenta um desafio existencial. Terão de absorver o custo, repassá-lo ao cliente, ou reinventar as suas cadeias logísticas, possivelmente através de armazéns dentro da UE.

– Para os Serviços Aduaneiros e Correios: Pressupõe uma complexidade logística monumental. Processar milhões de micro-taxas diárias exigirá uma automação e eficiência sem precedentes, sob o risco de criar enormes gargalos e atrasos na entrega.

Uma Medida Antichinesa?
Embora a medida seja tecnicamente “neutra” e se aplique a encomendas de qualquer origem, o alvo político e mediático é claro: a China e as suas plataformas de e-commerce. A medida insere-se num contexto mais amplo de reavaliação das relações económicas UE-China, que inclui investigações por subsídios, preocupações com direitos humanos e dependências estratégicas. A taxação das pequenas encomendas é, assim, a frente mais visível e diária desta nova postura comercial defensiva.

Um Novo Paradigma com Custos
A aprovação desta taxa alfandegária simboliza o fim da era de um comércio global sem atritos para o cidadão comum. A UE, ao desmantelar a isenção dos 150€, escolhe prioritariamente proteger a sua base industrial e arrecadar receitas, aceitando o custo político de um consumo mais caro. A medida pode, de facto, forçar uma maior internalização das cadeias de abastecimento e oferecer um fôlego aos retalhistas europeus. No entanto, como bem aponta a crítica, o risco de ser percebida como mais um imposto disfarçado, que beneficia o Estado sob o manto de uma narrativa geopolítica, é real. A partir de julho de 2026, o preço da globalização, até para a mais pequena encomenda, terá um custo mais visível: 3 euros.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

A DECISÃO DE EMERGÊNCIA DA UE SOBRE ATIVOS RUSSOS EXIGE VIGILÂNCIA DO CIDADÃO

Introdução: Um Precedente Perigoso
A recente decisão da União Europeia de manter imobilizados os ativos do Banco Central da Rússia, baseada numa cláusula de “emergência económica”, consolida um padrão preocupante porque arbitrário. Este mecanismo, justificado como excecional, permite contornar a regra da unanimidade entre Estados-Membros, princípio fundador que garante equilíbrio e soberania dentro do bloco. A prática, já testada durante a pandemia de COVID-19, revela como a classificação de uma situação como “emergência” serve frequentemente de pretexto para decisões políticas rápidas, pouco escrutinadas e potencialmente arbitrárias.

O Equilíbrio Perdido: Segurança contra Soberania
Este caso vai além do juízo sobre a Rússia e coloca uma questão fundamental: qual é o equilíbrio adequado entre medidas de segurança económica ou estratégica e os princípios de propriedade privada e soberania financeira? E, sobretudo, quem decide esse equilíbrio, e com que mandato? O que hoje se aplica a ativos russos pode, amanhã, justificar o bloqueio de contas de qualquer cidadão ou Estado sob nova “emergência”. A arrogância do poder, a pretexto do COVID e da Guerra, está a corroer as garantias legais e a tornar-se insuportável para cidadãos conscientes.

Geopolítica na UE: A Lei do Mais Forte
A guerra na Ucrânia evidenciou, de forma crua, as divisões geopolíticas na Europa. Em vez de uma resposta verdadeiramente coletiva, assistiu-se ao oportunismo de uma Europa dividida, onde os interesses das grandes potências, notadamente o núcleo da E-3 (Alemanha, França e, outrora, o Reino Unido), frequentemente se sobrepõem aos dos demais Estados-membros. Para impor os seus interesses, estas potências recorreram ao estratagema da “emergência”, suspendendo o compromisso da unanimidade e, com ele, o principal mecanismo de proteção das soberanias nacionais mais pequenas.

Os Pequenos Estados: Campo de Batalha das Potências
Esta dinâmica segue a lógica da “lei do mais forte”, que só é contida por um poder equivalente. Na sua ausência, os países menores tornam-se o campo de batalha onde as potências disputam influência, vendo-se obrigados a “pôr-se em bicos de pés” para se alinharem com os grandes. Essa posição é instável e leva à abdicação dos seus próprios interesses nacionais, como se observa no isolamento imposto a países como a Hungria quando ousam divergir. O fraco é instrumentalizado, e a solidariedade europeia revela-se seletiva.

Consequências: Erosão da Confiança e Danos Colaterais
O congelamento prolongado de ativos soberanos, agora normalizado como procedimento automático, fragiliza a confiança no sistema financeiro internacional e levanta sérias dúvidas sobre a proporcionalidade e a transparência das instituições da UE. Além disso, o recurso crescente a sanções económicas como instrumento político raramente atinge apenas as elites; os danos espalham-se maleficamente por sociedades inteiras, afetando cidadãos comuns tanto do lado sancionado como do lado sancionador. A história mostra que os conflitos são muitas vezes alimentados por elites, mas os custos são invariavelmente distribuídos pelos povos.

Conclusão: O Imperativo da Vigilância Cívica
Num momento em que decisões cruciais são tomadas em nome da Europa, é fundamental que os cidadãos mantenham um espírito crítico aguçado e exijam transparência absoluta. É urgente recordar aos representantes que a democracia não pode degenerar num governo tecnocrático, autoritário e opaco, desligado do bem comum. A vigilância cívica é o último garante contra a corrosão da democracia, das liberdades e o abuso de poder. Não podemos permitir que “emergência” se torne sinónimo de arbitrariedade institucionalizada.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

DA EUROPA ARMADA À EUROPA PENSANTE

Urgência de uma Cultura de Paz versus Neocolonialismo mental

Quando a guerra deixa de ser excepção

A Europa atravessa um momento histórico de particular gravidade. Não apenas pelos conflitos armados nas suas fronteiras alargadas, mas sobretudo pela transformação silenciosa da guerra em horizonte normal da política. O rearmamento acelerado, o discurso da inevitabilidade do conflito e a aceitação quase acrítica de exigências como a da NATO para investir 5% do PIB na militarização indicam que estamos perante uma mudança civilizacional, não meramente estratégica, mas cultural e moral de consequências trágicas.

Neste contexto, a Nota Pastoral da Conferência Episcopal Italiana (CEI), de 5 de dezembro de 2025, com o título: “Educar para uma paz desarmada e desarmante”, apresenta-se como um raro contraponto ético. Não propõe ingenuidades pacifistas, mas uma crítica estrutural à cultura da guerra que se reinstala no continente europeu com assustadora naturalidade.

A irresponsabilidade alemã: memória perdida e repetição histórica

O papel da Alemanha nesta espiral armamentista é particularmente inquietante. Depois de décadas em que a contenção militar se justificava pela memória do horror do século XX, o país surge agora como motor central do rearmamento europeu. Esta mudança é apresentada como pragmatismo geopolítico, mas contém um grave erro histórico: a amnésia estratégica.

A Alemanha esquece que a sua segurança nunca foi garantida pelo militarismo, mas precisamente pela integração económica, pelo diálogo, pela cooperação continental e por uma ordem europeia baseada na superação dos antagonismos armados. Ao investir massivamente em armamento e ao aceitar o enquadramento estratégico imposto pela NATO e pelo eixo anglo-atlântico, Berlim abdica de pensar a Europa como sujeito autónomo para pensá-la com objcto. E o que desautoriza a Europa é o facto de toda ela dançar em torno da elite europeia EU-3 (Alemanha, França e Reino Unido) que com sua encenação desvia as atenções da Europa para os seus interesses nacionalistas de elite. Os belicistas europeus na política e no jornalismo transmitem uma imagem de companheirismo agitado como se a ameaça viesse toda de fora. «Quem cava uma cova para os outros, cai nela», diz um provérbio.

Mais grave ainda: a Alemanha assume uma lógica de confrontação com a Rússia sem refletir seriamente sobre as consequências geopolíticas malévolas de longo prazo para o próprio continente europeu.

NATO e Reino Unido: a geopolítica da divisão permanente

A NATO, enquanto aliança militar, cumpre a função para a qual foi criada. O problema surge quando ela se transforma num ator normativo e cultural, ditando prioridades económicas, políticas e até educativas aos Estados membros.

A proposta, explícita ou implícita, de destinar 5% do PIB à defesa não visa apenas garantir segurança, mas militarizar a sociedade: a linguagem, os valores, o imaginário coletivo. A guerra torna-se aceitável antes mesmo de começar.

O Reino Unido, por sua vez, desempenha um papel particularmente ambíguo e irresponsável. Após o Brexit, Londres procura reafirmar relevância geopolítica através de uma postura agressiva, promovendo uma visão de confronto permanente com o espaço euroasiático. A sua influência sobre a política externa europeia, embora indireta, continua a alimentar uma estratégia de fragmentação do continente, historicamente vantajosa para potências marítimas, mas profundamente nociva para a estabilidade europeia.

A leviandade da União Europeia: economia sem geoestratégia

Talvez o elemento mais preocupante seja a ausência de pensamento geoestratégico próprio da União Europeia. A UE reage, mas não age; segue, mas não propõe; administra crises, mas não constrói visões.

A Europa parece incapaz de refletir sobre um dado fundamental: geograficamente, é uma península do grande continente asiático. A sua segurança de longo prazo não pode ser pensada contra a Rússia, mas com a Rússia. A história mostra que sempre que a Europa tentou excluir, cercar ou humilhar o espaço russo, acabou por gerar conflitos devastadores,  primeiro para si própria.

Elaborar um tratado de paz duradouro com a Rússia, fundado na segurança comum, na cooperação económica e no respeito mútuo, não seria sinal de fraqueza, mas de maturidade civilizacional. A CEI aponta precisamente nessa direção ao rejeitar a lógica da dissuasão armada como fundamento da paz.

Do colonialismo clássico ao neocolonialismo mental

O rearmamento europeu não é apenas uma questão militar. Ele insere-se numa continuidade histórica mais profunda: a transição do colonialismo esclavagista clássico para um neocolonialismo mental.

Se outrora o domínio se exercia pela força física, pela ocupação territorial e pela exploração direta dos corpos, hoje exerce-se pela manipulação da consciência. A centralização da informação, a homogeneização do discurso mediático, a redução do debate público a narrativas simplistas e polarizadas produzem cidadãos incapazes de pensar fora das categorias impostas.

Este neocolonialismo é, paradoxalmente, mais radical que o anterior: escraviza a consciência desde a infância, moldando perceções, medos e lealdades antes mesmo que o pensamento crítico possa emergir. A guerra, neste contexto, não precisa de ser declarada porque  passa a ser interiorizada.

O sangue dos filhos do povo e os interesses das elites

A Nota Pastoral da CEI recupera uma verdade antiga e sempre atual: as guerras são decididas por elites e pagas pelo povo. Os filhos das classes populares continuam a ser a matéria-prima dos conflitos, enquanto os benefícios económicos, políticos e estratégicos se concentram em círculos restritos.

A indústria do armamento, os complexos financeiros e os aparelhos políticos alimentam-se de medo e divisão. A paz, pelo contrário, ameaça esses interesses porque exige redistribuição, transparência, cooperação e justiça social.

Uma cultura da paz como investimento estratégico

A grande inversão proposta, implicitamente pela CEI e explicitamente necessária é esta: substituir o investimento na guerra por um investimento estrutural na paz.

Aplicar 5% do PIB europeu numa cultura da paz significaria: educação para o pensamento crítico e plural; diplomacia preventiva e contínua; mediação internacional independente; justiça social como política de segurança; comunicação descentralizada e diversidade informativa; reconstrução do sentido comunitário e da fraternidade civil e universal procurando neste sentido também levar as máquinas e as indústrias de produção para países carenciados em vez de os obrigar a abandonar os seus biótopos naturais fugindo da pobreza para a Europa.

Isto não é utopia, seria estratégia de sobrevivência.

Europa armada ou Europa consciente?

A Europa encontra-se perante uma escolha histórica. Pode continuar a seguir as políticas tradicionais da guerra, travestidas de realismo, ou pode ousar uma rutura cultural profunda.

A Nota Pastoral da Conferência Episcopal Italiana recorda algo essencial: a paz não é fraqueza, é força civilizacional. Não nasce das armas, mas da justiça; não se impõe, constrói-se; não serve elites, protege povos.

Sem uma conversão ética, cultural e estratégica, a Europa arrisca tornar-se apenas um espaço militarizado, dividido, subalterno, rico em armas, mas pobre em consciência.

Uma Europa que não pensa, apenas reage. Uma Europa que esquece que a verdadeira segurança começa quando a guerra deixa de ser imaginável.

A pergunta que a Europa e particularmente a E-3 precisa de enfrentar não é apenas quanto gastar em defesa, mas que tipo de humanidade deseja promover. Financiar a guerra é fácil, rápido e politicamente rentável no curto prazo. Financiar a paz exige paciência, coragem e visão histórica.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo:

 

A CASA QUE A DOR CONSTRÓI

Não me peças canções de alva harmonia
nem versos que adormeçam como a névoa branda.
Trago na voz um grito de ironia,
ferrugem de esperança já roída e borrifada.

Sofro ao ver o rebanho, denso e crente,
gritar convicções alheias, em uníssono aberto,
defendendo, com ardor de inconsciente,
o jugo que lhe pesa, o mesmo laço certo.
São ecos, não são vozes. Sombras de uma ideia
que o sistema, tal ourives, forjou no seu segredo.
E cada qual repete, na arena que rodeia,
o dogma que o domina, pensando-o seu credo.

Oh, leve opinião de sofá e ecrã,
feita de vento e de espasmo passageiro!
És galo a desafiar outro galo, vã
disputa onde o tom sobe, irreal e altaneiro.
A casa da ipseidade não se ergue
com tijolos alheios, nessa areia movediça.
É grão a grão, na solidão que insurge,
que a rocha própria à mente edifica e talha.

Levo comigo o peso dos meus séculos,
a desconfiança antiga, herdada e visceral:
o Estado, a oficina, os jornais, os oráculos
a moldar o consenso, a tecer o cabresto geral.
Minha alma chora, ao ver a multidão dominada
gritar, ufana, as ordens do seu dono,
numa paixão pós-fática, deslumbrada,
que serve, sem o saber, o seu próprio abandono.

Não sigo a maré do consenso raso,
essa corrente que tudo anula e amontoa.
Busco a falha, a pedra áspera e diferente,
a ruptura com quem forja o molde e o caso.
Somos feitos de pele e de persuasão,
mas o nós perde-se no dilúvio dos canais.
Toda a mensagem é estratagema e arma,
e só acende, se a temos, a nossa própria brasa.

Por isso levanto, lenta, a minha casa,
pedra sobre pedra, com as mãos gretadas.
É trabalho áspero que nunca sossega,
esta construção de ideias, estas paredes erigidas.
Suporto o incómodo da opinião ligeira,
do já se sabe fácil, da certeza rápida.
A minha pedra custa, fere e alteia,
mas a casa é só minha, conquistada mas íntima.

É melhor o cansaço de pensar,
a fadiga da pedra mal cortada,
do que a leveza letal de me deixar
pensar por outrem na minha própria estada.
A opinião alheia é jugo e frio.
A própria, só conquistada em luta, é libertação.
Mesmo que reste apenas o desvio,
e um humor seco como minha última oração.

Assim construo, entre o grito e o sorriso,
numa resignação ativa e irónica.
Não mudo o mundo, mas defino o piso
do meu próprio quintal, nesta era frénica.
E talvez, se muitos levantarem a sua pedra,
se cansarem de ser voz e buscarem ser verbo,
a cultura da paz, que a guerra impede,
desabroche não por decreto, mas do nosso próprio corpo.

O trabalho é longo e a noite é densa.
Mas a casa cresce. Ela é minha e é imensa,                                                                    Contra a maré alheia, pedra sobre pedra.

Pois o ego, alheio a si, perde-se nas roupagens
que a sociedade veste sobre o seu esqueleto nu.
Ao não pensar por si, segue nas multidões,
e acaba por odiar o mundo que em si meteu.
Leva-o a engodo de ideias fabricadas,
tão longe da raiz, da seiva natural,
que constrói, à sombra de vontades alheias,
uma consciência à venda, corrompida e formal.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

(Escrito no auge do Regime COVID-19)