Uma sociedade de prisioneiros das fronteiras do próprio meio, por um lado exige que se torne público o acto da união sexual através do casamento e por outro solicita a privacidade do amor. Que lésbicas, homossexuais manifestem a exigência do reconhecimento público é natural porque o rosto forma-se no reconhecimento público. Levar uma vida dupla seria um atentado à própria identidade. Os amantes ao deixar de ser meros indivíduos manifestam esperança no futuro e naturalmente esta requer encenação pública. A bênção do público é um factor importante no desenvolvimento e corrobora a vontade do par se amar.
Também há pessoas individualistas que recusam o casamento preferindo viver na privacidade onde melhor podem asfixiar e asfixiar-se. Mais que as formas externas de estar na vida, importante é a atitude e a consciência pessoal na relação consigo mesmo e com o outro. Naturalmente que por detrás do comportamento espontâneo das massas anónimas que vivem do dia a dia à espera de orientação, há uma consciência esforçada e mais formada que puxa a carroça, apostando no sentido. O mundo consta de uns e outros mas só avança no esforço.
Na homofilia talvez esteja subjacente o desejo do homem se defender da auto-alienação na mulher e vice-versa. Por seu lado a heterossexualidade obsessiva pode resultar da defesa da ameaça do eu interior (selbst) pelo outro homem. Em cada relação esconde-se uma extensão do eu próprio, no processo de descoberta e integração dos pólos feminino e masculino em si mesmo.
Muitas vezes, por detrás duma fixação sexual exagerada (mania fálica) está latente o desejo de penetrar numa zona mais profunda de si mesmo e da realidade, esconde-se uma dinâmica artística a querer ser desperta, a querer participar activamente no acto da criação. Muitos perdem-se nesta fase. A vida não quer que se lhe passe ao lado dela distraidamente, ela procura a chance dum momento para irromper num mundo a correr. A saudade sexual predispõe à criatividade, só que, muitas vezes, o parceiro é visto como símbolo da própria vitalidade servindo de alheamento em vez de facilitar o próprio encontro e o encontro do outro. Então o homem, na falta de sensibilidade pelo seu sentimento, esgota-se no símbolo da sua criatividade. Muita energia ao ser focalizada não no outro mas no objecto do outro esvai-se, deixando um sabor a fome cada vez maior, fome esta, que bloqueia uma verdadeira individuação no nós. A aventura da interacção numa relação mais profunda justifica o trabalho de descoberta do espírito que está por detrás de todos os determinismos, hereditariedades e afinidades. As instituições conhecem a força criativa do eros, também por isso se servem dela e o reprimem para que se transforme em energia canalizada e mais alargada. Um amor limitado ao instinto rapidamente se abandalha quer nas ligações homossexuais quer nas heterossexuais.
Referências Religiosas
Hoje a imagem de Deus é mais hermafrodita. Por outro lado os textos bíblicos não emitem tanto um juízo sobre a pessoa singular mas sim sobre o fenómeno moral numa perspectiva de responsabilidade social. Na Bíblia reprova-se moralmente a sodomia e a superficialidade do agir. S. Tomás de Aquino, na Sacrae Theologiae Summa, diferencia afirmando: “os comportamentos homossexuais não correspondem à ordem do criador, ou seja, à natureza humana genérica sendo por isso contra a natureza; mas esses correspondem à natureza concreta do homossexual sendo por isso natural.” Uma homossexualidade que tenha como intuito só o prazer é condenada. No trato do fenómeno diferencia-se entre a homossexualidade irreversível ou persistente e uma certa predisposição para a homossexualidade.
Numa sociedade com diferentes estados de consciência com os mais múltiplos biótopos não se torna fácil uma linguagem transparente e compreensiva para todos eles, atendendo aos seus antagonismos e pressupostos.
Os lobbis homossexuais também não tornam fácil o trabalho de aproximação. Sentindo-se marginais são mais solidários entre si. São, porém, portadores dos mesmos vícios e preconceitos da sociedade envolvente ao optar por uma prática de afirmação baseada na dialéctica, na estratégia partidária da confrontação, em vez de se situarem numa dinâmica integral e global baseada numa filosofia a-perspectiva. São vítimas da ideologia que os não tolera mas usam as mesmas estratégias de ataque e de defesa das ideologias de que são vítimas; uns e outros sofrem da mesma doença dualista, comungando da precariedade da mesma mentalidade. No meio de tudo isto a pessoa é prejudicada, falta a reflexão. O homossexual que inconsciente e primordialmente queria superar a bipolaridade da banalidade do real cai na mesma banalidade irreflectida da afirmação costumeira do antagónico.
Os impacientes com tomadas de posição públicas da Igreja não devem ver nelas apenas um acto retrógrado, ou mais pedagógico, mas também uma preocupação fundada, dirigida à generalidade (muito embora expressas, por vezes, numa atitude não evangélica, não integral). As instituições religiosas estavam habituadas a apresentar às pessoas sistemas de fé, de orientação e de pertença mas hoje o que as pessoas procuram são experiências espirituais e uma relação de trato individualizada. Uns e outros falam sem se entenderem. Muitos daqueles sofrem de intelectualitis tomando as ideias pela coisa em si, pelo verdadeiro. Não vivem nem agem de coração nem parecem movidos pelo amor a Deus e aos homens mas sim por análises, ideias e juízos unidos a uma atitude de desconfiança. Os últimos parecem, por vezes, seguir apenas a esotérica da própria fantasia. Uma coisa é o teor da Constituição e outra é a sua aplicação no código civil. Este comporta já as situações concretas. O mesmo se diga da doutrina e da pastoral.
Os cristãos não seguem sem mais as formas do mundo secular. Precisam de mais tempo porque também sabem que a vida é complexa, mais que o momento, mais que a necessidade imediata ou a lei do menor esforço. Facto é que na Igreja ainda se discute quando na secularidade se abdicou de pensar, bastando para ela a rasoira do pragmático e do útil, a propaganda. A discussão é necessária e forma a consciência. A lei do esforço é que provoca a evolução, a entropia, o mal é o tubo de escape no seu avançar. A Igreja ao manifestar-se publicamente em questões de moral deve estar atenta para se não incompatibilizar com uma sociedade que só conhece a sua exterioridade e desconhece as profundezas da sua filosofia e vida. Não conhecem o substrato, o ponto de partida duma Igreja mais joanina que petrina em que a sua lei fundamental é: “ama e faz o que quiseres”, o seu programa e a sua vida uma pessoa: Jesus Cristo, o próximo. Importante é que as diferentes formas se predisponham ao serviço do amor no desenvolvimento individual e comunitário.
A espiritualidade cristã não se fixa no hábito cultural (é processo, reconhece a aculturação e a inculturação), parte dele; para ela a maior relevância está no ser, na essência do Homem e não na lei. Deus não fica preso nas expressões do sexo; este é um meio no progredir para o ser adulto, a caminho do ser Ómega. Essencial, no caminho para ele, é a honestidade pessoal e a qualidade da relação pessoal numa dinâmica de ipseidade e alteridade. (Neste sentido recomendo a leitura do livro “Ipseidade e Alteridade, Uma Leitura da Obra de Paul Ricoer”, do Prof. Doutor Joaquim de Sousa Teixeira, Estudos Gerais, Série Universitária, Centro de Literatura e Cultura Portuguesa e Brasileira, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, Lisboa 2004, não esquecendo também as obras do grande sábio do século XX Pierre Teilhard de Chardin, que resume na sua pessoa a investigação e as preocupações de todo o século e a modernidade. Um exemplo: “O Fenómeno Humano”).
Dum lado e doutro há vítimas dos morteiros de doutrinas e ideologias. O pior de tudo seria o fanatismo e a indiferença.
A Igreja institucional, apesar de muitas vezes se prostituir, quer proteger o mais genuíno do homem, a sua dignidade humano-divina. A política e a economia não acreditam no Homem, usam-no. Por outro lado a sociedade só tem a experiência da dialéctica, a exclusão no dia a dia, a prática antagónica e não integral. Certamente que a maioria (tanto na sociedade como na Igreja) ainda não está preparada para viver a liberdade cristã; a irreflexão procura mais as achas da moral do que a liberdade responsável.
O pensar correcto apoderou-se assim de temas querendo dar a impressão aos distraídos que actua em defesa da sua vida. Como não têm uma visão da sacralidade e divindade do ser humano que torna este intocável espalham e vivem da camuflagem e da baralhação das ideias. Por outro lado os preconceitos de muitas pessoas religiosas justificam a agressividade dos opositores. A instituição religiosa também tem partido da visão dos “súbditos” como cordeiros contrariamente à vontade do Evangelho, subjugando, também ela, muitas vezes, o homem, contrariamente à sua vocação inicial. Como o moralismo é o capítulo mais fácil de compreender pelo público, religião e política têm vivido deste capital de segunda sem se preocuparem suficientemente com o ser e a dignidade do homem em particular. Por debaixo das vestes clericais e da importância dos políticos esconde-se muita pobreza e incapacidade humana. O mesmo se diga a respeito de cada um de nós individualmente.
O ser humano cada vez sente mais necessidade de se exilar das instituições. A Igreja tem de voltar a ser o lugar de asilo das pessoas, estando com elas e ao seu lado, tornando-se num lugar da fé, do diálogo, à margem do medo e da disciplinação. Numa sociedade cada vez mais superficialmente heterónoma, a posição da instituição religiosa deveria defender a autonomia, e a responsabilidade individual, como quer o cristianismo. “O Sábado está para o homem e não o homem para o Sábado.” Jesus ressuscitou do túmulo das ideias, dos hábitos, das instituições e das verdades para que ele, a vida, encarnasse em toda a pessoa e toda a pessoa se transformasse nele. “Quem me quer seguir tem de deixar tudo…” O sentido é encontrar-nos a nós mesmos e os outros, todos a caminho sem encalharmos num homem ou numa mulher, numa ideia, lei ou instituição. Esta está para nos ajudar no difícil caminho da libertação dos nossos instintos e hábitos. O papel da Igreja é o de José de Arimateia e não o dos Pilatos ou dos sacerdotes interessados em ver o próximo, Jesus, prostrado debaixo da cruz, reduzido a votante e a pagador de impostos.
A missão da igreja é salvadora, ajudar e não condenar, é descobrir com as pessoas a fonte do verdadeiro amor, do ágape com compreensão mútua pela dispersão no eros ou noutras carências. A nível público tem o direito de recomendar caminhos de libertação, numa missão de unir e não desunir. Naturalmente que a sociedade secularista está mais interessada nas leis do consumo, do negócio e do proselitismo. Se o indivíduo não fizer esforço a nível individual e comunitário a sociedade torna-se cada vez mais insuportável, superficial e decadente. Enquanto governos e sistemas passam, a Igreja permanece com o esforço contínuo de se libertar e libertar, consciente de por vezes se ter equivocado e de cometer erros. Facto é também que, no sistema de pensamento dialéctico, a que a nossa civilização se submeteu, também o secularismo, apesar de muitos erros, tem constituído um elemento de progresso e de ajuda.
União numa ética relacional progressiva
A ligação de dois seres quer ser uma mais valia na caminhada da realização e da descoberta do sentido. A caminhada pode dar-se a várias “velocidades” conforme as consciências individuais e do par. O respeito da privacidade e dos limites do outro são pressupostos para o crescimento próprio e para a realização do nós. O outro é então reconhecido como outro e não como pura abertura.
Toda a durabilidade comporta não só prazer como também o sofrimento. Este é a condição para o crescimento. Nesse sentido, dois pólos em transformação precisam de tempo e de abertura um ao outro, para se transformarem os dois. Não chega fazer do parceiro uma botija quente contra a frieza da morte, ou fazer do barulho da vida um meio contra o silêncio póstumo apostando todos os cartuchos na beleza, juventude e vitalidade. A fuga à vida na procura do máximo de excitação dos sentidos e de opiação do espírito, à margem da procura do encontro com o outro e consigo mesmo, é contra a evolução e contra o progresso. Este pressupõe a formação de consciências não só extrospectivas mas também introspectivas. (Segundo estudos, as lésbicas não são tão extrovertidas como os colegas masculinos. Elas não consomem tanto, são mais caseiras e recolhidas. Não estão, assim, tão dependentes da determinação alheia.)
Doutro modo, heterossexuais e homossexuais só se submetem à rotina dum brotar e dum cair de folhas com mais ou menos viço em diferentes estações numa circulação fechada do tempo. Ser e estar, para o outro, implica a participação no seu destino, respeito, consideração, reconhecimento e confiança numa dinâmica contrária ao narcisismo na fuga da monotonia. É difícil reconhecer-se como imagem de Deus sendo mais fácil procurar-se ou desaparecer no outro. A aproximação do parceiro terá que corresponder à aproximação de si mesmo. Na entrega recíproca torna-se palpável a própria vida. No encontro do outro cria-se um espaço livre que possibilita aos dois despir as máscaras do medo e caminhar juntos. Então Deus torna-se o horizonte do nosso coração e o sentido do nosso pensamento. Passamos a descobrir Deus em nós e na natureza como saudade duma união mais profunda de que toda a união humana é sombra e mais um passo na sua efectuação, na realização da encarnação através da qual a matéria se espiritualiza.
O sentido da união não se reduz apenas a dar continuidade ao corpo físico. Ela comporta o corpo psíquico e espiritual, e este não se pode subjugar à ordem natural costumeira. Todos estamos chamados a renascer numa contínua natividade espiritual, com expressão temporal para lá do ego e dos costumes do tempo. Importante é que a “tua vontade aconteça” independentemente do próprio pensar e da projecção dos próprios problemas em ti. O ser humano transcende os seus costumes e a cultura; estes apenas devem servir de apoio e não de tropeço ao desenvolvimento individual e comunitário.
Uma atitude para lá do condenar e do absolver
Os fariseus e os cumpridores trouxeram a Jesus uma mulher casada apanhada em flagrante em fornicação com um homem. A lei e o costume exigiam uma condenação e um castigo para a acção dos dois.
Jesus chamado a julgar o caso pronuncia-se: “Quem não tiver pecado que atire a primeira pedra… Não julgueis e não sereis julgados”.
Ali não se trata de condenar ou de absolver. As duas posições são falsas porque partem da objectivação da pessoa e do pressuposto estático de abstracções ilícitas redutoras, à margem da relação pessoal e da dignidade humana. A vida que se fixe na lei torna-se árida e mecânica, petrificando o ser no estar. Todos nós nascemos do espírito e temos a lei de Deus inscrita no nosso coração expressando-se na consciência e esta não se deixa fixar nem no tempo nem no espaço, tomando embora conotações deste. A era iniciada pelo mestre de Nazaré é o tempo dos filhos de Deus, do homem adulto, da graça e da reconciliação. A partir daqui, conscientes das nossas fraquezas, damo-nos as mãos uns aos outros no nosso peregrinar.
A Nova Aliança não é feita nem se identifica com a lei mas com o coração humano, com o “coração da natureza”; por isso é eterna num processo de esforço em reconhecer o outro, em reconhecer Deus no fundamento do ser relacional e na descoberta da própria “imagem e semelhança”. O Homem novo está chamado a incarnar no mundo e não apenas a ser reduzido a modelador de mundos nas formas estáticas do passado. A moral cristã é mais exigente, ela preocupa-se não só com o de fora mas também com o de dentro do mundo e do homem.
“Impuro não é o que entra pela boca mas o que sai do coração” diz o Evangelho. As formas externas podem ajudar as internas na expressão da Realidade mas muitas delas não são conditio sine qua non. Jesus libertou o Homem das jaulas das ideologias, muito embora o nosso mundo político e social só jogue com ideologias para assim melhor poder amarrar a pessoa e reduzi-la a massa. No cristianismo a pessoa transcende ideologias e religiões. “A lei é que mata”, reconhecia Jesus.
Por isso um socialismo marxista militante em curso combate tanto o cristianismo. Quer dar a ideia de ser ele o lugar da liberdade e de defender a liberdade do homem, quando, na realidade, quer jogar com a sua fraqueza e assim subjugá-lo, dando-lhe, muito embora, a impressão de o libertar. A igreja muitas vezes deixa-se levar por provocadores que se assenhorearam do tema à laia de toureiros entrando também ela na arena em defesa de valores secundários sem considerar a sua própria doutrina no que respeita à “infalibilidade” da consciência individual. Tal como S. Tomás de Aquino também o teólogo Joseph Ratzinger, hoje Papa Bento XVI, afirmam: “Acima do Papa, como expressão da autoridade da Igreja, existe a consciência de cada um, à qual é preciso obedecer antes de tudo e, no limite, mesmo contra as pretensões das autoridades da Igreja”.
É óbvio que a verdadeira liberdade evita o mal que reconhece. Uma pessoa, lúcida e aberta, é a instância moral. O papel da Igreja é de, no respeito, ajudar à introspecção e não de condenar ou louvar. Não se pode exigir a ninguém o sacrifício pelo sacrifício. A vida não está na renúncia mas no amor. O amor é a chave para Deus, para si mesmo, para o outro, para a natureza… é o princípio e o fim. A paixão é como que o relâmpago que faz já participar do encantamento espiritual da abertura, para lá dum hedonismo permissivo, começando talvez por ele.
O cristianismo vivido não se perde nos tabus da sociedade. Ninguém pode ser impedido de viver, seja em nome de que moral for. Um homossexual de boa vontade tem o direito de dizer que também é igreja. A vida acontece para lá das convenções. Importante é tomar com naturalidade a componente sexual genital e nela descobrir a componente espiritual da mesma. Só uma posição descontraída sobre a homossexualidade pode ajudar a todos.
Experiência sensual e êxtase místico não se contradizem
Pelas obras seremos reconhecidos. Há que evitar tanto a perversidade natural como a espiritual e a disciplinadora, assumindo-se cada um como homem e como mulher adulto e responsável para consigo mesmo e para com os outros. Uma vida digna também não está no seguimento dos desejos mas na transformação e na procura dum novo rumo para os nossos desejos e paixões.
Tanto a homofilia como o celibato não podem ser considerados como destino social. Experiência sensual e êxtase místico não se contradizem. Uma visão demasiado restritiva do celibato impede a Igreja de reconhecer na matéria, na natureza, o corpo de Cristo. O cristão sabe que não deve desperdiçar a vida hoje para viver amanhã. “Basta a cada dia o seu trabalho. Não julgueis para não serdes julgados, pois, conforme o juízo com que julgardes, assim sereis julgados; e, com a medida com que medirdes, assim sereis medidos”(Mt 7, 1). Não é legítimo usar o prazer como meio de discriminação social. A “inocência virginal” pode ser mantida nas diversas práticas sexuais numa verdadeira relação de encontro pessoal. Pureza e impureza estão na atitude e no espírito. Cristo não é um ciumento que quer construir a felicidade do céu à custa da felicidade da terra. Ele acabou com a dicotomia; encarnou o seu espírito na carne numa disponibilidade de doação, para assim espiritualizar a carne. “Castidade” é viver em sintonia com o outro, a caminho, num esforço contínuo de libertação, num desejo teleológico de relação para lá da posse, num ambiente criador em que a ternura desabrocha num diálogo entre hipseidade e alteridade.
Identificação também dissonante
Na satisfação do desejo está o apelo ao reconhecimento do outro como uma consciência distinta. Uma satisfação na inter-subjectividade e reciprocidade de consciências conduz a uma identificação mais elevada e mais integrada na globalidade. Somos todos seres carentes entre necessidade e mistério, entre apetite e rejeição, estamos todos orientados para o absoluto, para a eternidade que procuramos no outro, como médio do transcendente.
Qual a intenção da natureza ao empurrar-nos na direcção da ausência? A fome predetermina a direcção, por detrás dela está uma intenção, um objectivo maior a descobrir. In Joaquim de Sousa Teixeira: “O desejo não é só um impulso vital, mas está sempre em relação inter-subjectiva; todos os dramas psicanalíticos colocam-se pois no trajecto que vai da satisfação ao reconhecimento”.
O prazer ao não ser autónomo (Aristóteles) indica para uma finalidade que o transcende.
A sexualidade é expressão e processo não se reduzindo a fim nem a mero objecto procriador. Só assim deverá ser considerada por uns e por outros.
A independentização do sexo como mera satisfação individual de dois indivíduos separados leva ao anonimato e à angústia; sem uma relação pessoal o homem empobrece contribuindo assim para a falta de sentido da vida. Esta falta exacerba ainda mais as necessidades sexuais. Homossexuais e heterossexuais sentem uma atracção física, emocional e espiritual pelo parceiro. Não é só sexo o que está em jogo. A intimidade e o carinho andam aliados ao eros no intercâmbio da construção da personalidade. Em terminologia cristã dir-se-ia: a meta é a realização do Cristo cósmico num processo de paixão e libertação.
A sexualidade tem também um carácter simbólico universal; a paixão material é um tropo da vida integral. Leva-nos à descoberta do outro em nós e de nós no outro, doutro modo seria apenas alienação. Assim passa a ser uma relação eu-tu–nós. Torna-se óbvia a descoberta abrangente da intenção e sentido, no reconhecimento da necessidade.
A necessidade vem antes do sentido para nos acordar para ele. Este acontece entre sujeitos, entre um eu e um tu, muito embora com momentos de materializações objectivantes. A necessidade satisfeita será acompanhada da emoção que lhe dá sentido e possibilita o relacionamento e assim a formação de consciências que conduzem à intencionalidade teleológica.
Na sexualidade dá-se o florir pleno da corporeidade num limiar a transcender; nela se expressa a fala natural de algo ainda ausente mas entre um mim e o outro. O orgasmo incita-nos a continuar a procura, o sentido, que numa relação consciente do eu-tu conduziria à experiência definitiva trinitária. A sexualidade como maneira de ser e viver inter-subjectiva, procura no outro o próprio lado invisível, o mistério. O outro é não só uma solicitação à auto-realização e à realização do outro, em nós, mas também à realização do nós. Como na realidade da vida dos astros assiste-se não só a uma força centrípeta mas também centrífuga, uma e outra ordenadas num sentido comum e transcendente. A carência pressupõe a vontade, o princípio consciente activo na percepção de que o amor é o outro lado da carência, a luz da sombra que por si mesma não existe. A inter-subjectividade é a religação à luz, é processo a caminho. É a experiência do limiar que nos não deixa ficar prisioneiros dum repetitivo frustrante que nos amarre à carência inconsciente, a uma mera luta entre o eros e a morte, seja ela homossexual, heterossexual ou existencial.
No processo de identidade individual (Id, Eu, Superego) identidade social (estética, ideias ídolos) trata-se de viver a relação sexual metafórica, cristãmente e não apenas moralmente. A sua leitura quer-se integrada num contexto mais largo do que o moral-social ou dialéctico para o ordenar numa outra esfera transcendente. Assim, parte-se da prática sem a condenar para a compreender e assim melhor orientar. Só assim se conseguirá compreender o sentido teleológico do ser e do agir. Doutro modo separamo-lo em dois mundos paralelos banais: o das ideias e o da praxis.
Não faz sentido fixar-se no fim afirmando-o sem reconhecer o seu princípio nem a caminhada a fazer. Doutro modo anda-se de mal-entendido em mal-entendido, passando-se à margem da realidade e no ataque ou desprezo recíproco da pessoa: os bons da teoria dum lado e os bons da prática do outro sem nunca se encontrarem, afirmando-se uns à custa dos outros na servidão a instintos, a ideias ou a ideologias oportunas e interesses institucionais. Reflexão e prática pertencem juntas, tal como apetite da carne e apetite do espírito, doutro modo, cai-se no curto-circuito do apetite objectivador e frustrante quer da carne quer do intelecto.
O alfabeto começa pelo alfa e termina no ómega mas não se reduz a duas letras. O texto, a vida consta de todas as letras, e aquele, para ser vida, pressupõe um diálogo relacional aberto que supere a perspectiva única no itinerário a fazer para o estado adulto. Seria insuficiente conhecer-se apenas as letras, é preciso aprender a juntá-las, só assim se chega ao sentido. A nossa sociedade preocupa-s quando muito em conhecer as letras. Uma cultura relacional na construção de sentido exige muita atenção não só às diferentes realidades mas também às diversas metáforas e figuras da vida. O diálogo, a nível de metáforas e dos símbolos, possibilita superar o conflito das interpretações conduzindo para uma realidade e uma vivência para lá da interpretação semântica.
Não se trata de conjugar apenas o eu-me-mim-migo até à exaustão na esfera do pensamento e da ideologia, mas de passar para um nós integral, de passar do prefácio à obra., do pragmatismo à inteligência e à vontade, na unidade do pensar-sentir-agir.
Também um desvio não deixa por si de ser veículo para a realização, o sentido. A finalidade material, ter filhos, não pode contrariar a realização no sentido dinâmico de ipseidade e alteridade, para lá duma motivação automática natural determinista.
Mais que o prazer, a satisfação do instinto narcisista na busca do imediato, a união de dois seres pretende a síntese do espírito com a matéria, a encarnação. No fundo do selbst, no eu interior, tornar-se presente não só o aspecto físico e psíquico mas também o espiritual. Juntos passam da exuberância do prazer à felicidade. Assim a satisfação do prazer no encontro dos corpos inicia-se o caminho para a realização na felicidade comunitária da união no espírito.
De facto, a realização material do desejo aponta para a efectuação do sentido espiritual. Este pressupõe o eu atemporal, universal, o eu trinitário que é ao mesmo tempo nós. “Um aspecto genial do freudismo consiste precisamente em ter desmascarado a estratégia do princípio do prazer, forma arcaica do humano, sob as suas racionalizações, sublimações”, in obra acima citada de Joaquim de Sousa Teixeira.
Sexualidade é uma parte da identidade, um luzeiro. Só serei aceite se me aceitar inteiro como sou. Este é um pressuposto para a mudança qualitativa do nosso ser e o melhor caminho para impedir a discriminação e o militantismo. É triste a perda de amigos devido à pertença a um grupo ou a uma religião diferente. A homofobia pode tornar-se forte na puberdade devido a mecanismos de defesa na procura de identidade. Há comportamentos violentos contra homossexuais e lésbicas inexplicáveis.
A sociedade ainda não aprendeu a respeitar a vida e o estilo de vida privada a pessoas com outra orientação sexual. Com isto renuncia a muita criatividade e recalca outra. A auto-realização possibilita maior criatividade. Há muitas formas de se ser feliz e o mundo em que vivemos é só um. Importa dar uma chance à felicidade e não sermos desmancha-prazeres, mas dar-lhes uma plataforma espiritual que os prolongue.
O evangelho é a magna carta da tolerância e da dignidade humana; está à prova o ser cristão, o ser-se Homem. O crescimento das consciências está dependente da disposição para uma mudança de mentalidades. Também os juízos de valor e atitudes dependem do desenvolvimento duns e doutros.
Homossexualidade não se reduz a sexo, ela comporta amor, relação e identidade pessoal tal como a heterossexualidade. Basilar é que se oriente no caminho do bem e da verdade sempre a descobrir-se em contínua metanóia.
O cristão consciente vive em processo de superação dos moldes dados, entrando numa relação interpessoal com todo o ser, não podendo simplesmente abdicar de pensar para recorrer ao julgar através de estereótipos. Este seria o pensar do mundo, não do cristão. O ser humano é processo, é ser relacional na multiplicidade e cujas relações se baseiam no respeito mútuo, na dignidade de seres em transformação, a caminho na realidade divina, no sentido do Cristo Ómega.
António da Cunha Duarte Justo
Teólogo e pedagogo