Com a mentira da sua vida conseguiu reabilitar a sua pessoa
Atempadamente, antes de ser publicado o seu último livro auto-biográfico, Günter Grass confessou que também ele tinha servido na “10ª Divisão Blindada da SS ” e que até ao fim acreditara na vitória final. Deixada a Divisão Blindada da SS continua a sua luta, não já com as armas reais mas com as armas do espírito. Afinal, não foi um herói da guerra, mas através dela um herói da literatura.
Ele que justamente atacou tanta gente que tinha servido o terror de Hitler, confessa tardiamente o seu pecado de infância. Naturalmente que foi um pecado venial, porque na idade de 17 anos não se pode exigir dum jovem aquela maturidade e esperteza que conduziu Grass ao prémio Nobel.
Com a sua confissão, na Alemanha, o seu rosto, que era uma instância, uma autoridade moral da esquerda, sofreu uns arranhões fortes.
Uns condenam-no por durante tanto tempo ter atacado muitos outros por se terem envolvido no “Drittes Reich” e ele ter calado o seu envolvimento.
Outros atacam-no por ter, com aquela encenação maquiavélica em entrevista sobre a sua autobiografia, motivado o público a comprar o livro e assim ganhar milhões através duma propaganda gratuita.
Outros querem viver em paz com o seu Grass que é realmente um grande poeta independentemente dalgum nevoeiro da sua vida que para outros não passa de oportunismo e hipocrisia por trás das máscaras.
Outros ainda reconhecem nele um poeta do estado ou simplesmente um homem com tantas contradições como é comum na nossa época. É toda uma geração de intelectuais (confronte-se a geração dos anos 60/70 hoje dominante a nível político e cultural em toda a Europa) que através do seu moralismo, da sua voz contra a burguesia se tornou a nova burguesia apoderando-se da cultura e do Estado.
Ele que sempre criticou a burguesia, que questionou a geração dos seus pais, polarizando e desacreditando o seu adversário, com uma consciência de guru será agora questionado. O seu valor literário não poderá ser contestado embora haja vozes que contestam o seu prémio Nobel por não ter ocultado ao júri o seu passado. Filho do seu tempo, não superou a dialética, só sabe pintar o mundo a preto e branco. Óptimo estilista, na arena pública e política não diferencia, mas sabe bem onde quer chegar. Polémico e auto-consciente, viveu sempre à sombra da sua inocência podendo atacar (mesmo indefesos) sem ricochete. Por isso reconhece a revista alemã “Der Spiegel” (nº. 34/Agosto) que Grass não poderia ter representado o papel que representou de escritor da Alemanha, se tivesse revelado mais cedo o seu passado. Neste caso teria de ter sido mais diferenciado no trato, nos discursos e nos escritos. Assim serviu interesses servindo-se.
Também ele se tornou vítima dum espírito de luta cultural intercutânea que leva ainda indiscriminadamente a considerar diabólico tudo o que tem a ver com o “Drittes Reich”. Além disso a instrumentalização da nódoa do nacional-socialismo prometia muitos dividendos para a esquerda socialista. Grass foi um dos seus fomentadores nos seus ataques aos do partido contrário. Para ele o governo de Kohl era uma máfia. Grass não queria construir pontes, do seu trono queria ter razão e seguidores.
A inocência que para ele reclama não a concede aos outros. Tal como a generalidade da geração mais velha também ele passa ao largo daqueles tristes anos. O medo e a culpa são alheados e projectados na Alemanha ocidental na continuação duma filosofia meramente dialéctica e ideológica como se estes instrumentos disciplinadores fossem suficientes para encurralar o rebanho. Este agir levou mesmo uma geração nova a ter vergonha de ser alemã: o lado extremo da vertente hitleriana. Finalmente também o grande Grass é abrangido pelo tal pecado original que com a geração de 68 queria que todo o povo alemão confessasse de geração em geração. Demasiada fé para se poder tornar realidade.
A atitude de Grass é bem compreensível tendo em conta que o ambiente paterno e a propaganda oficial fomentavam o entusiasmo de qualquer jovem. A filosofia, a estratégia e a dinâmica nazi era de tal ordem que não podia deixar ninguém indiferente. Alguns não perderam o entusiasmo e souberam, tardiamente mas ainda a tempo em termos históricos, canalizá-lo para campos de acção mais nobres. De facto, ao ler-se os discursos de Hitler e “Mein Kampf” será difícil, a qualquer jovem ou pessoa simples ou não esclarecida, não se deixar entusiasmar pela retórica escrita de Hitler. Quem ler um pouco, apesar das blasfémias como a sua teoria da raça, o extermínio dos judeus, etc., compreende o entusiasmo de então, porque se apresenta muito lógico e autêntico defensor do seu povo dentro do seu nacionalismo socialista.
Grass terá sido um sequaz irreflectido como outros o foram por convicção. O sistema de Hitler era de tal maneira coeso que convencia qualquer incauto ou inocente. Por isso só quem conhece apenas o aspecto diabólico de Hitler mas não conhece a realidade de então e o aspecto “profético” de Hitler poderá colocar todos os outros no banco dos réus.
Oxalá esta confissão tardia de Grass sirva para desideologizar as frontes e a abordagem dos tempos do holocausto. Houve muita gente bem intencionada que foi arrastada a cometer o desumano. A ideia pura e racional pode chegar ao extremo de negar o próprio homem. Uma ideologia não pode ser combatida à base de culpabilização. Ela tem de compreender porque é que os actuantes agiram assim e não diferentemente, doutro modo só se fomenta a amnésia, a auto defesa ou a presunção. As faltas dos outros criam a ilusão das próprias serem mais leves. A vergonha não leva a lado nenhum. No mundo há ainda muita gente que hipocritamente aponta o dedo contra os alemães querendo-os tornar cativos dum passado inglorioso. Seria frívolo querer-se ser ilibado da vida à custa do denegrir os erros dos outros como é prática entre as ideologias.
Também as épocas do 25 de Abril e de Salazar estão por descrever e continuam a ser instrumentalizadas a bel-prazer. A lei e o costume estão sempre do lado dos usufrutuários. A história socorre-se da hipocrisia no respeito pelos seus actores e beneficiados. Só depois da sua morte lhe fará um pouco de justiça. Primeiro terão de morrer os “destronados” e os seus “herdeiros” – os revolucionários e apoiantes – para se poder depois chegar a um certo equilíbrio na avaliação. Neste contexto, o falar mal dos outros é o manto que se veste para encobrir os males próprios.
Por trás de cada pacifista encobre-se um guerreiro. A história não é para se julgar mas para se compreender. A mentira encontra-se tanto nas fileiras dos combatentes contra a direita como na dos combatentes contra a esquerda. Eles não conhecem pessoas, só conhecem ideias. Entre eles se recrutam e escondem os oportunos da vida. A história só se interessa pelo global e não pelo particular ou individual. Do individual apoderam-se os actores da história, da cultura e da economia. Nesta dinâmica ninguém está disposto a morrer pelo povo. O povo é que terá de morrer pela nação e pelos seus protagonistas.
Macabro é o facto de vivermos numa sociedade de tal maneira hipócrita e desumana que se o jovem autor Günter Grass tivesse dito logo a verdade, ele nunca chegaria a ser o que foi nem teria a chance de se reabilitar. Grass com a mentira da sua vida conseguiu reabilitar a sua pessoa e entusiasmar muita juventude a singrar nas fileiras socialistas. É um poeta moralista que vive das realidades e que à sombra do pecado original movimenta e serve muitos interesses.
Os “homens bons” só brilham na escuridão da noite por isso não será correcto falar-se da parte do dia da História. Esta seria menos dialéctica e mais polar.
Quer queiram quer não Grass venceu ao serviço duma causa social. Ele como “homem bom” tem razão: a história só se lembra dos vencedores, que do povo não reza a História!
António da Cunha Duarte Justo