Interpretação da sexta petição: Tentação ou Prova?
O Pai Nosso é a oração básica de toda a cristandade; ela foi ensinada (Mt 6,9-13; Lk 11,2) por Jesus aos seus discípulos. Para Mateus a Oração do Senhor é uma reza completa porque engloba as necessidades humanas e a assistência divina. Com ela entra-se numa relação com Deus que possibilita ao crente a experiência da ressonância entre imanência e transcendência e, se rezada em comunidade, possibilita também a ressonância intercorporal. O Pai Nosso é completo, porque nos afasta da hipocrisia ordinária e apresenta-nos também o contexto próprio para a relação com Deus, apontando, como condição para o orante, o cumprimento da Regra de Ouro, que é a prontidão para perdoar ao próximo.
O Pai Nosso tem sete petições dirigidas a Deus e une cerca de 2,5 mil milhões de pessoas na terra, na sua relação com Deus. Como as plantas olham para o sol à procura de vida assim a nossa alma levanta o olhar para Deus na procura de vida espiritual, realização e perfeição. O Sol, Deus, a vida, não giram apenas em torno de mim. Eu apenas sou um Protagonista da peça divina no palco de Deus, onde o enredo tem toda a humanidade a atuar, numa caminhada universal onde não há espectadores.
Na obra da criação, criados como humanos, sendo parte da criação, estamos também sujeitos às leis da natureza e como tal estimulados a seguir a força dos desejos e instintos (bons porque nos conduzem, mas em certos pontos sensíveis podem levar-nos à tentação) e a viver numa certa dialética que pode possibilitar desenvolvimento e purificação.
O sexto pedido no Pai Nosso (Mat 6:13, objecto de reflexão aqui) reza assim: “E não nos deixeis cair na tentação„ ou “e não nos exponhas a uma prova” (et ne nos inducas in temptationem: tradução feita do grego: και μη εισενέγκης ημάς εις πειρασμόν). Nas traduções poderá haver divergências entre a versão da Vulgata Latina e o texto grego dos Evangelhos.
Em 2017 o Papa Francisco generalizou o debate sobre o problema da exatidão das traduções, esclarecendo que: “Deus não nos tenta” (1) e dizendo que a frase do Pai Nosso (Mateus 6.13) “e não nos deixes cair em tentação” (noutras línguas: “e não nos induzas/conduzas à tentação” tinha sido mal traduzida! Também as correções feitas pelos episcopados francófono e italiano (2) não satisfazem alguns teólogos porque entre outras coisas as novas traduções não seriam fiéis à tradução oficial da Vulgata: (et ne nos inducas in temptationem “e não nos leves/induzas para a tentação”)!
A questão seria mais complicada se partíssemos da Vulgata como fonte, mas de facto a fonte donde vem a Vulgata é o grego. De facto, „Não nos deixes cair em tentação” significa “não permitas que sejamos tentados a ponto de cairmos” ou “não nos submetas ao teste” porque se levados ao exame das tentações, como foi Jesus, sucumbiríamos devido à fraqueza da própria fé. Por outro lado, o “não nos deixeis cair em tentação” aponta para a incapacidade de resistir ao mal sem a assistência divina. Interessante aqui é, de facto, o problema do sermos tentados que, no caso, não poderia ser por Deus, mas, por outro lado, o que torna totalmente viável a interpretação bíblica de Ratzinger/Bento XVI (e a exegese e análise filológica clássica) que apontam para o aspecto de sermos provados por Deus, como se depreende do texto grego.
A abordagem ao texto de forma teológica e o acesso filológico-exegético ao texto permitem-nos uma visão mais ampla da questão. As diferentes traduções não apresentam problemas teológicos em geral, mas apenas especificidades de exegese e filologia.
Segundo exegetas e filólogos na tradução do grego para o latim ou para outras línguas, o verbo grego εισφέρω/isféro pode ser traduzido tanto por tentar como por provar ou examinar, no sentido de pôr a pessoa à prova, e submetê-la a um teste; além disso ainda há a questão da tradução do aramaico para o grego, mas que não é relevante para aqui.
Atendendo ao facto de as palavras gregas da frase do Pai Nosso (3) possibilitarem diferentes significados: εισενέγκης/eisenénkis do verbo εισφέρω/isféro significa ”levar, “trazer”, “entrar”, “guiar” e “conduzir” (sem a significação de “deixar” como na tradução portuguesa (4): nesse caso teria sido usado o verbo επιτρέπω com o significado de deixar, permitir, consentir, instruir, ou o verbo αφίημι no sentido de permitir, deixar, enviar) e o substantivo πειρασμόν/peirasmos que significa tentação, provação/ teste ou exame (este parece ser mais fiel ao original grego), temos alternativas de tradução a partir do texto de origem grega; tais como: “e não nos deixes cair em tentação”, “e não nos leves à provação”, ou simplesmente, “não nos testes”. Afirmam os filólogos que Peirasmos tanto possibilita ser traduzido por “Tentação” (maligna) como por “Provação” (de Deus). Os diferentes contextos bíblicos (Hermenêutica) apontam mais para a ideia de provação: “e não nos induzas/conduzas a provas/tentação”, ou: “e não nos exponhas a uma prova” (porque não somos como Jesus que resistiu a elas no deserto). Os peritos linguistas concluem que “As duas possibilidades da tradução (Tentação e Provação) são legítimas pois “nenhuma tentação nos ocorre sem que Deus permita que ocorra”, pois, o mal é a ausência de Deus. O esforço, que espera da nossa parte, é para nos elevarmos em direcção a Deus para ele nos poder dar a mão (5). No caso de Abraão e seu filho Isaque, Deus põe Abraão à prova (Gen 22:1-2), o mesmo se diga no caso de Job.
Razinger/Bento XVI, no livro “Jesus de Nazaré I”, Capítulo 5, reflecte sobre a sexta petição do Pai-nosso, a saber: “E não nos conduzas à tentação„, noutras traduções é “E não nos deixeis cair em tentação”. Nele Ratzinger arruma com aparentes contradições nas traduções. Passo a citar as suas palavras (6), de expressão espiritual-teológica:
“Deus não deixa o homem cair, mas testa-o (7) … Para amadurecer, para realmente passar, cada vez mais, de uma piedade superficial para uma profunda unidade com a vontade de Deus, o homem precisa de ser testado. Tal como o sumo do mosto de uva fermenta para se tornar vinho nobre, também o homem precisa de purificações, transformações que são perigosas para ele, nas quais pode cair, mas que são, no entanto, os meios indispensáveis para chegar a si mesmo e a Deus. O amor é sempre um processo de purificações, renúncias, transformações dolorosas de nós próprios e, portanto, um caminho de amadurecimento”. Ao dizermos “Não nos conduzas à tentação”, („Não nos deixeis cair em tentação”), estamos a dizer a Deus: Eu sei que preciso de provas para que a minha natureza seja pura… “(8).
“Quando Francisco Xavier foi capaz de dizer a Deus em oração: Amo-vos, não porque tendes céu ou inferno para perdoar, mas simplesmente porque sois meu Rei e meu Deus, um longo caminho de purificação interior tinha certamente sido necessário até esta liberdade final; um caminho de maturação sobre o qual a tentação, o perigo de cair, espreitava, mas ainda assim um caminho necessário” … (Em contexto cristão tentação é o estímulo a uma acção imoral – pecado – e este é como a sombra que surge onde Deus não brilha).
Ratzinger conclui: “Assim, podemos agora interpretar a sexta petição do Pai Nosso de uma forma mais concreta. Dizemos a Deus: Eu sei que preciso de provações para que a minha natureza se torne pura. Ao ordenares estas provas sobre mim, se dás ao mal um pouco de espaço livre, como fizeste com Job, então por favor lembra-te da medida limitada da minha força. Não me dês demasiado crédito. Não estabeleças limites demasiado amplos nos quais eu possa ser tentado, e está perto com a tua mão protectora quando ela (a prova, o exame, a “tentação”: meu parêntesis!) se tornar demasiado para mim… Na nossa oração da sexta petição do Pai Nosso, devemos, por um lado, estar dispostos a assumir o fardo da provação que nos foi imposta. Por outro lado, é o pedido que Deus não nos dá mais do que somos capazes de carregar; que Ele não nos deixa sair das Suas mãos. Fazemos este pedido com a certeza confiante que São Paulo nos deu: “Deus é fiel; Ele não permitirá que sejas tentado para além das tuas forças. Ele dar-te-á uma forma de sair da tentação para que possas suportar (1 Cor 10:13)”.
Joseph Ratzinger-Bento XVI cita ainda Cipriano que referiu duas razões pelas quais Deus dá um poder limitado ao mal e assim “possibilitar o arrependimento, refrear a nossa arrogância, para que possamos experimentar novamente a miséria da nossa fé, esperança e amor, e não nos imaginarmos grandes por nossa própria vontade” como agiam os fariseus que pensavam que devido ao seu mérito já não precisavam da graça”. Cipriano não desenvolveu o outro tipo de teste ou tentação, mas de não esquecer é o facto de Deus colocar um “fardo particularmente pesado de tentação sobre aqueles que lhe são especialmente próximos” (por ex.: Therese de Lisieux).
Ratzinger centra as suas atenções no núcleo do cristianismo e quem o lê tem a sensação de estar ao mesmo tempo com um sábio e com um santo. Como ele diz, a relação com Deus torna os seres humanos, humanos. E como “Deus é amor, torna-se ociosa a tentativa de o rodear de argumentos e tentar agarrá-lo”. De facto o homem é demasiado pequeno para conseguir tal e emaranha-se em si mesmo ao tenar reduzir o acesso a Deus apenas com factores de causalidade.
De facto, a luz da verdade, a graça e a iluminação da razão são os luzeiros necessários para avançarmos e nos desenvolvermos.
Deus sabe que estamos sujeitos às leis do mundo que ele criou e para as superarmos precisamos da sua assistência. As resistências a elas pressupõem esforço e o apoio especial divino que é pedido por quem tem a consciência da sua pequenez e da grandeza divina; de facto, no mundo real, sem resistência não há desenvolvimento.
António CD Justo
Teólogo e
Pegadas do Tempo
Junto aqui Duas versões / traduções diferentes, de Aramaico (a língua em que Jesus ensinou).
1ª versão
Oh Tu, respirando vida em tudo, origem do som cintilante.
Tu brilhas em nós e à nossa volta,
até a escuridão brilha quando nos lembramos.
Ajuda-nos a respirar uma respiração santa na qual Te sentimos apenas a Ti-
e deixa que o Teu som ressoe dentro de nós e nos purifique.
Que o Teu conselho governe as nossas vidas e clarifique o nosso propósito (intenção )
para a criação que partilhamos.
Que o desejo ardente do Teu coração una o céu e a terra
através da nossa harmonia.
Concede-nos diariamente aquilo de que precisamos de pão e de discernimento:
o que é necessário para o apelo da vida crescente
Solta as cordas das faltas (erros) que nos ligam,
como nos libertamos do que nos liga à culpa dos outros.
Não nos deixemos enganar por coisas superficiais,
mas liberta-nos daquilo que nos prende.
De Ti provém a vontade todo-eficaz, o poder vivo (energia/força viva) para agir,
a canção (música) que tudo embeleza e se renova de idade em idade.
Verdadeira vitalidade a estas declarações!
Que sejam o solo a partir do qual todas as minhas acções crescem.
Selado na confiança e na fé.
Ámen.
2ª versão
Mãe-Pai de todos os criados! O teu nome ressoa sagradamente através do tempo e do espaço!
O teu ser uno (Unidade divina) cria em amor e luz – para sempre e agora!
Que a Tua vontade seja feita através da minha – como no espírito, assim em todos os formados (tudo o que tem forma)!
Dá-nos alimento diariamente – quanto ao corpo, assim como à alma!
Solta os laços dos meus defeitos (falhas) – tal como eu os solto (perdoo) aos outros!
Não me deixes perder em superficialidades e em coisas materiais!
Liberta-me da imaturidade e de tudo o que me prende e não me liberta!
Pois Teu é o poder e a música do universo – agora e aqui e na eternidade. Ámen.
Traduzido por António Justo a partir do texto alemão.
(Nova tradução do PAI NOSSO de acordo com Martin Luther, Septuaginta e Vulgata de acordo com: G. Lamsa (Gospels from an Aramaic Perspective), adaptação inglesa: N. Douglas-Klotz,Adaptação alemã: J.E. Berendt).
Fonte: https://robert-betz.com/mediathek/inspirationen/vater-unser/
- (1) Deus não nos passa nenhuma rasteira, como diz o Papa Francisco: https://www.vaticannews.va/de/papst/news/2019-05/papst-franziskus-generalaudienz-vaterunser-katechese-mai-19.print.html
- (2) A Conferência Episcopal Francesa mudou a tradução do pai nosso de uso corrente “Et ne nous soumets pas à la tentation” pela nova forma: “Et ne nous laisse pas entrer en tentation”. O verbo francês “soumettre” (submeter) foi então substituído por “ne pas laisser entrer”(literalmente: não deixe entrar). A nova versão está mais próxima da formulação grega do Evangelho (Mt 6:13), em que a expressão “μὴ εἰσενέγκῃς” (não conduzem a) é usada. Há o legítimo receio manifestado por teólogos de mesmo na nova versão introduzida poder haver “falsificação das palavras de Jesus”, como referem comentadores.
- (3) A frase grega Mt 6:13, και μη εισενέγκης ημάς εις πειρασμόν, deixa margens para algumas variações nas traduções em contexto.
- (4) As interpretações do Pai Nosso apareceram de várias maneiras desde Tertuliano
- (5) A tradução em latim, usou a clássica expressão “inducas”, que sublinha o fato que somos “induzidos”, “levados” à tentação, reforçando esse sentido implícito no texto grego. Os exegetas para melhor contextuarem o texto apontam para um manuscrito aramaico encontrado em Qumran onde se reza “faz com que eu não entre em uma situação difícil demais para mim”, o que também legitimaria a expressão portuguesa “não nos deixeis cair em tentação “e o latim “inducas” no sentido de “deixar cair” e não de “fazer cair”! Quanto ao uso do substantivo “Temptatio” (Tentação) se advertia para a palavra como falaciosa. As pistas linguísticas são muito esclarecedoras. De facto, Deus pode pôr-nos em prova, mas sem tentar ninguém (1Coríntios 10,13 e Tiago 1,12). “Et ne nos inducas in temptationem”, em português: “não nos deixeis cair em tentação”, em alemão: “ E não nos conduzas à tentação” („Und führe uns nicht in Versuchung ”)!
- (6) Pai Nosso, análise: https://www.bibelwissenschaft.de/wibilex/das-bibellexikon/lexikon/sachwort/anzeigen/details/vaterunser-1/ch/5ac77bb77dc5bbf25a3950e3e58809ad/ e https://br.markusdasilva.org/serie-orando-o-pai-nosso-com-poder-estudo-no-9-nao-nos-deixes-cair-em-tentacao/
- (7) Joseph Ratzinger-Bento XVI, Jesus de Nazaré I, Freiburg-Basel-Viena 2007, pp. 195-199): “A redação desta petição do Pai nosso é ofensiva para muitos: Deus não nos leva, afinal de contas, à tentação. De facto, diz-nos St. James: “Que ninguém que se sinta tentado diga: Eu sou tentado por Deus”. Pois Deus não pode ser tentado a fazer o mal, nem Ele próprio tenta ninguém. A tentação vem do diabo, mas a tarefa messiânica de Jesus inclui suportar as grandes tentações que conduziram e continuam a conduzir a humanidade para longe de Deus. Ele deve, como vimos, sofrer estas tentações até à morte na cruz e assim abrir o caminho da salvação para nós. Deve assim descer, não só depois da morte, mas com ele e em toda a sua vida, por assim dizer, ao inferno, ao espaço das nossas tentações e derrotas, a fim de nos levar pela mão e nos carregar para cima. A Carta aos Hebreus colocou especial ênfase neste aspecto, destacando-o como uma parte essencial da viagem de Jesus: “Pois desde que ele próprio foi levado à tentação e sofreu, é capaz de ajudar aqueles que são tentados (2,18). Não temos um sumo sacerdote que não possa simpatizar com a nossa fraqueza, mas um que em tudo foi tentado como nós, mas não pecou” (4:15).
- (8) …” se me encomendar estas provas, se der um pouco de espaço livre ao mal, como fez com Job, então lembre-se por favor da medida limitada da minha força. Não me dêem demasiado crédito. Não me atraiam demasiado os limites dentro dos quais posso ser tentado, e estejam perto com a vossa mão protectora quando ela se tornar demasiado para mim”.
Assim como Deus não nos tenta para o mal, também o perdão de Deus não está limitado pelos homens. “Perdoai as nossas ofensas, assim como nós perdoamos “ é uma verdadeira súplica do perdão misericordioso de Deus, para ganharmos força e perdoarmos também. Deus não faz contas mesquinhas porque, se formos a contar todos os nossos rancores, não somos dignos do perdão de Deus, o que significaria andar com uma pedra ao pescoço ou um cílio apertado no estômago. Não, Deus oferece-se para que nos transfiguremos e não para nos desprezarmos. Suplicamos o perdão de Deus e comprometemo-nos a perdoar. É Deus que lidera e nós bendizemos o seu exemplo, por imitação de Jesus Cristo. Sem Ele e sem a Divina Graça seríamos uns desprezíveis.