Modo de Pensar em Curto-circuito
António justo
Definimo-nos pela fala, por isso não nos podemos calar! Pela fala nos tornamos na procura dum tu que nos leva a nós. Pela fala nos formamos e pela fala queremos provar a nossa existência. Diria mesmo, somos conversa; por vezes conversa fiada. Nesta deixamos de nos tornar veículo e conteúdo para nos reduzirmos a veículo apenas!
Na sequência dum artigo que escrevi sobre Saramago, entre outros e-mails que recebi, um dizia: “Gostei de ver Camões como bombeiro deste fogo da maldade! Afinal o fogo do amor camoniano a combater o outro! Não escreva mais sobre este “gajo” que os suecos usaram como os franceses usaram Linda de Suza, para estigmatizarem Portugal e os Portugueses em flashes imagéticos opostos ao que nós somos! Está ao nível da Maitê Proença.” Fim da citação.
Como dizia a princípio, embora em contexto, definimo-nos pelo texto e através dele nos desenvolvemos. É fácil perder-se no contexto sem chegar ao texto. Se não fosse o texto bíblico e as suas afirmações e contradições não nos encontraríamos tão adiantados civilizacionalmente. Somos veículo e veiculados do mesmo mistério que a Bíblia procura abordar. Por isso escrevo mais sobre o assunto. Se não fossem as discussões e a vontade de encontrar a verdade, que tem sempre, além da face oculta, a tua e a minha versão, então não passaríamos da cepa torta; permaneceríamos de rosto voltado para a sombra. A controvérsia, se for honesta e sincera leva à luz daqueles que ainda se encontram de pé, a caminho, e ainda não morreram para si e para a vida, ao contrário daqueles que permanecem pelo caminho na sombra da rotina e dum progresso balofo, enquistados na auto-suficiência e no dogma da própria opinião.
Naturalmente que Portugal é universal e tem lugar para todos os antagonismos e a discussão pode gerar a luz. O problema está na tesoura que se traz na cabeça e censura tudo o que não corresponda à própria opinião e aos próprios interesses.
A falta de formação e de vontade de saber simplificam o trabalho incendiário de quem abusa da ingenuidade. Saramago, na sua maneira como interpreta a Bíblia dá a impressão de ser um fundamentalista. O fundamentalismo religioso e ideológico alimenta-se da mesma manjedoura dos adamastores do medo, do infantilismo e do interesse abusivo. Ele desconhece que a Bíblia também é a biografia dum povo e duma pessoa, descritas com as melhores metáforas e imagens protótipos do Homem e da sociedade.
Camões em Os Lusíadas descreve a acção e a herança cultural do povo lusitano. Os autores bíblicos, à luz de Deus, descrevem, no Antigo Testamento, a acção do Homem em relação com o Outro, com Deus que lhe dá forma.
A “Ilha dos Amores” de Os Lusíadas certamente que não será aproveitada por Saramago para difamar os portugueses como imorais. Nas descrições Bíblicas encontra-se a vontade do povo mais relevante de toda a História, o povo judeu, que na discussão com o seu Deus consegue afirmar a sua identidade como povo contra o tribalismo circundante, contribuindo, de forma eminente para o desenvolvimento da humanidade. Nos seus mitos e na imagem do seu Deus se revela a sua grande personalidade e vontade de ser. Com o seu Deus, que lhe dá identidade, “o povo eleito” não submergirá na História como outros submergiram.
Quem faz guerra”dá e leva”. José Saramago sabe bem atear fogos. A melhor resposta ao fogo da maldade será o esclarecimento, a formação cultural. Na escuridão da desinformação, da ignorância e do egoísmo, até os pirilampos se tornam grandes luzeiros. Precisamos é de mais promotores do amor, do amor jesuino e do amor camoniano. Só este fogo purifica e desenvolve! Então todos nós nos transformaremos em pirilampos a iluminar a terra e não a viver da treva!
Então deixaremos de ser os “cruzados” de hoje que vão ao caixote das mazelas da História buscar o fogo para novos incêndios. As achas colocadas nas fogueiras por aí ateadas são da mesma natureza das fogueiras medievais: as achas da ignorância e das ideologias.
O autodidacta Saramago revela grandes défices culturais a nível de saber científico. Não deixa porém de ter a sua importância em certos aspectos literários e de ocupar um papel relevante de identificação para os seus fiéis correligionários e para pessoal miúdo que necessita de vedetas para se galardoar e sentir grande. Cada um tem direito à felicidade à sua medida e no seu biotopo próprio. O conjunto dos diversos biotopos é que tornará belo o “jardim à beira mar plantado.” Saramago parece ser beneficiado pelas tágides das letras mas, apesar da sua idade, o espírito da sabedoria parece ser recalcado pelo espírito adolescente!
Ao afirmar que a Bíblia é “um manual de maus costumes” queria reduzi-la a um livro de ética justificadora da sua ideologia! Saramago usa a guerra tal como o povo judaico se serviu da dialéctica na procura da sua identidade como pessoa e como povo. Ele quer afirmar a vulgata marxista materialista à custa da vulgata judaico -cristã. Procura fora o que deveria encontrar dentro.
A Bíblia é um universo de mundos, encontrando-se nela lugar para as diferentes constelações e concepções de vida. Na Bíblia se encontra a base da filosofia e da cultura que produziu esta realidade que é a civilização ocidental. Quem não entendeu isto desconhece o valor da religião e da filosofia que são nosso berço e mãe. Saramago comunga da douta ignorância oportuna posta ao serviço dum socialismo e republicanismo ultrapassados que, apesar de tudo, mereceriam muito mais qualidade e seriedade, na estratégia da sua promoção! O seu internacionalismo não pode afirmar-se à custa da difamação e de malentendidos sobre o nosso legado cultural, a não ser que nos tenhamos tornado masoquistas e interessados na decadência e queda da nossa civilização! Não há que destruir, mas sim renovar e remodelar! O legado judaico – cristão sintetiizou nele o saber doutras culturas e levou o Homem a não mais andar curvado à obediência do conveniente e possibilitou o levantar-se mesmo contra um deus da subserviência. O Deus biblico é libertador, como se pode ver no seu fruto, a civilização ocidental, que apesar das suas contradições mantem, por baixo do borralho das suas cinzas, o fogo do amor, a lei das leis! Infelizmente um certo meio ideológico só parece comprazer-se nos odores do esterco da História da Igreja católica, como se esta só constasse da casa de banho! Torna-se suspeito quem caça moscas com tais odores!… Precisa-se é da vontade de saber , de formação humana e de crítica construtiva que viva bem com a farinha do seu moinho sem desviar nem sujar a água dos moinhos dos outros!
A discussão é necessária porque muitos não usam a própria cabeça para pensar e se instruir, preferindo encostar-se a um pequeno ídolo nobilitado pelo prémio Nobel ou a uma opinião indiscutível. Os seus ataques desqualificados revelam a arrogância do poder instalado consciente de que “para quem é bacalhau basta”! Naturalmente que todos nós temos em nós algo da natureza saramago, independentemente de nos chamarmos Saramagos ou Antónios!
O saber bíblico é personalizador, apostando na dignidade humana e nos direitos dos humanos e dos seres em geral, apelando consequentemente para a desobediência à banalidade do meramente factual e do pensar correcto, rebelando-se contra autoridades meramente exteriores, não favorecendo, por isso, as ideias peregrinas dos santuários das autoridades e das ideologias. Se para alguns parece ser suficiente e consolador o cheiro das ideologias para outros, para os conscientes da História e da Humanidade não!
Cada época tem a sua luz e as suas sombras. Cada argumentação também. Hoje procura reduzir-se tudo a mercado e submeter-se tudo às leis da concorrência. O nosso pensar de hoje, forjado pelo modelo económico é tão precário como o modelo de pensamento de épocas passadas que arrogantemente criticamos. Tornamo-nos prisioneiros do próprio discurso no labirinto da dialéctica. O pensar bíblico ajudar-nos-ia a complementá-lo e a deixar de viver em curto-circuito. Este novo pensar em termos cristãos poderíamos dominá-lo de pensar trinitário que é na sua essência complementar integral e não antagónico como o binário (dialético) seguido do certo e errado, um pensar em contínuo curto-circuito! Naturalmente que a aguilhada da dialética se revela como uma boa estratégia de desenvolvimento, pelo menos à tona da realidade!
Deus é mais que o que possamos dizer dele pela positiva e pela negativa e a religião é mais que o milagre. A bíblia é mais que poesia e que um livro de moral. Ela é vivência, é caminho e vida.
Deus não submete o povo a provações nem exige fidelidade e obediência externa. Ele é o mais interior do Homem, a sua ipseidade, o seu selbst, a sua própria possibilidade. De resto o nosso falar de Deus não passa dum falar do Homem e de nós mesmos.
© António da Cunha Duarte Justo
antoniocunhajusto@googlemail.com
José Saramago tem toda a razão. Os crentes são míopes e a religião é o ópio do povo! Ainda bem que sou ateu!
JF
Até parece misterioso que quer ateus quer teistas precisem de Deus para se definirem…
É humano e bíblico que a mesma luz do espírito vista da própria perspectiva apareça como luz e vista da perspectiva do outro se reduza a ópio a “cegueira de espírito” . Assim a mesma postura que para uns significa achincalhar, vindo dum lado, se vem do outro passa a ser razoável!
Naturalmente que também há os eunucos, os cínicos que branqueiam a sua tolerância e a sua opinião nas águas virgens da indiferença. Sabem que quem fala deixa o rabo de fora!…
Quem se deixa embriagar pela luz da alta inteligência não se deve admirar se depois der por si no chão da sua sombra!
António Justo