A religiosidade cada vez se autonomiza mais numa necessidade de diferenciação mais individualizada. O mesmo se dá na política. Esta, como a religião, está demasiado preocupada consigo mesma para poder notar as verdadeiras necessidades do povo. O que neste artigo refiro a respeito da religião pode-se aplicar às instituições políticas.
Na Alemanha a percentagem de pessoas que se declaram religiosas corresponde à percentagem de votantes nas eleições para o parlamento; isto não quer dizer que as pessoas que votam são as mesmas que se declaram religiosas. Seria interessante uma investigação nesse sentido.
À secularização segue-se a individualização.
As pessoas manifestam diversas necessidades de salvação a que correspondem diferentes necessidades espirituais implicando diferentes espiritualidades e diferentes práticas..
O acesso ao religioso pode dar-se de forma cognitiva ou experimental. Nas espiritualidades mais que o acto cognitivo religioso predomina o dado experimental, a experiência religiosa, com carácter específico pessoal. No mundo católico conhecem-se várias espiritualidades: salesiana, jesuíta, dominicana, franciscana, beneditina e outras. Estas porém andam ligadas geralmente a ordens e congregações com um público reduzido. As paróquias, duma maneira geral, não estão preparadas para responder a muitas das necessidades espirituais mais individualizadas das pessoas. Limitam-se a oferecer serviços litúrgicos indiferenciados para a generalidade. As instituições estão mais preocupadas com a ocupação de lugares e funções à margem dos destinatários.
De momento observa-se na sociedade uma grande procura de espiritualidades, novas formas de ser e de estar, emancipadas das instituições que até agora possuíam o monopólio da organização e da responsabilidade. A consciência humana pretende dar um passo em frente no seu desenvolvimento. As instituições terão de se humanizar não chegando continuar a justificar-se pelo seu fim em si. Doutro modo carregarão sobre si mesmas a responsabilidade de se tornarem elas mesmas em impedimento do desenvolvimento individual! O anonimato económico, social e estrutural tornou-se de tal modo insuportável que, se as instituições estabelecidas não se preocuparem em dar verdadeiras respostas ao homem todo, no respeito efectivo pela sua dignidade, provocará comportamentos insuportáveis.
Ao non sens da nossa vida civil corresponde maior procura de valores perenes e o surgir de novos indicadores de religiosidade. Não é suficiente o aspecto cognitivo da religião -a abordagem racional, o aspecto da experiência – o aspecto vivencial, manifesta exigências duma religiosidade mais diversificada. Esta expressa-se nuns como um “sentimento da presença de Deus”, noutros como o”sentir um poder sagrado na natureza”, noutros como “o sentimento de que defuntos estão presentes”, noutros ainda como a “vivência da unidade” ou como “uma relação pessoal com Deus”, etc.
Por todo o lado se assiste a uma privatização da religião acompanhada da sua desinstitucionalização. O mesmo processo se dá na política. O teólogo Karl Rahner afirma mesmo:”O devoto de amanhã será um místico.”. A religião é cada vez menos transmitida, menos experimentada directamente e por isso menos presente. A complexidade quer da religião cristã quer da política cada vez se distanciam mais do povo devido à sua incapacidade de ser povo, de ser eu-tu-nós e ao facto do povo não ter hipótese de compreender fenómenos complexos e de cada vez estar mais condicionado pela TV que fomenta a opinião sem noção, uma atitude infantil contra o saber, um subjectivismo analfabeto. Se no século passado terá dominado em alguns meios o aspecto folclórico de Fátima, futebol e fado hoje torna-se cada vez mais digno de salão o espírito plebeu duma Televisão cada vez mais mata tempo e distraccão vulgar.
A vivência religiosa através da experiência é diferente do sentimento religioso através da reflexão cognitiva. No futuro será mais importante a experiência da religiosidade. Aqui está mais presente a experiência do que o acto cognitivo. Naturalmente que na experiência religiosa não faltará o elemento objectivador da reflexão. Este porém não se pode identificar com a experiência mística. A reflexão manca sempre atrás da experiência mística. O aspecto cognitivo a que a pessoa religiosa se encosta, o tipo de espiritualidade, pode constituir uma espécie de crivo. No âmbito cristão diria mesmo que aí a experiência mística ganha um chão possibilitador da individualidade e do nós, tal como na fórmula trinitária cristã.
Neste sentido, as congregações e ordens religiosas terão de fazer um esforço por tornar mais transparente e imediata uma espiritualidade que, através da sua forma de vida conventual conduz lentamente à experiência mística. Hoje essas jóias escondidas nas ordens terão que ser manufacturadas de tal forma a serem apreciadas por um tipo de ser humano apressado e que não suporta muito tempo de preparação, de ascética ou catarsis, dado querer chegar logo ao essencial, à vivência fundamental. Naturalmente que os iniciados no religioso e no numinoso não poderão correr o perigo de, para democratizar tudo, arranjarem atalhos que poderiam levar a identificar uma experiência sentimental com a experiência mística. Esta implica que a pessoa passe pelo cadinho do grande deserto místico e não seja confundida com uma espécie de orgasmos duma mera experiência sentimental, ou dum acto cognitivo. Diria que a experiência mística se realiza para lá de todos os limites, tal como o númeno que o espírito concebe para lá do fenómeno, não o podendo expressar nem através do entendimento nem através da experiência.
Também a vivência mística é inexprimível, fica na evidência da própria experiência. O busílis da questão para os mais responsáveis estará em ter uma antena para as diferentes necessidades e consequentes espiritualidades e em criar ambientes na paróquia onde as diferentes necessidades se possam formar e tomar expressão em diferentes espiritualidades. A tarefa não será fácil dado que muitas pessoas conseguem compreender o religioso cognitivamente mas não o relacionam com uma experiência religiosa e vice-versa.
Hoje já não é a igreja a única transmissora de valores e de auxílio para a vida. Os meios de comunicação social assumem cada vez mais esta função. Dado que a nossa sociedade é dominada pela mentalidade utilitarista não é de esperar para ela muitos impulsos da Igreja ao contrário do que acontecia no passado. Hoje a sociedade deixa-se distrair com a excitação cíclica que os Media oferecem, assumindo eles ao mesmo tempo a função de cano de escape. O resultado será a escuta e a nova criatividade que se pressuporá para o novo tipo de instituição.
Da ordem dialéctica para a ordem mística
A Igreja terá de se preocupar mais com a sociedade e menos consigo mesma. Doutra forma cada vez dará menos impulsos à sociedade perdendo assim a sua relevância. A pessoa terá de deixar de ser considerada objecto para se tornar sujeito. O cristianismo iniciou a era do sujeito mas informando-a na ordem dialética platónico-aristotélica. Esta foi por assim dizer a era de Jesus. A nova era do cristianismo, o novo Natal, será menos religiosa mas mais cristã, nela se iniciará a ordem mística, a era do Cristo. Aqui o ser religioso realizará o encontro do Cristo no Jesus, o encontro do divino no humano. Os tempos já estão maduros para tal. Doutro modo a Igreja continuará a ocupar-se mais com a pedagogia do que com a Verdade, mais com o cognitivo do que com a experiência à semelhança dos professores que de tão preocupados com a pedagogia se esquecem dos conteúdos a transmitir. Ao persistirem em continuarem assim, transmitem a impressão aos externos de que religião é algo importante até um certo grau do desenvolvimento.
Hoje é visível e latente uma nova religiosidade que terá de ter resposta com novas iniciativas. Estas devem ser dirigidas especialmente à mulher. De facto a mulher está mais perto do integral, do global e por isso mesmo da mística. Como penso que neste novo século a mística ganhará maior espaço social, nele será muitíssimo importante a integração da feminidade. De facto, no século XXI a mulher porá o pé na porta da história não podendo esta fazer-se sem ela. Naturalmente que o novo espírito, já não dialético não se realizará na afirmação dos contrários, isto é a afirmacao do homem não pode acontecer à custa da mulher nem vice-versa. Já é tempo da Igreja Católica alargar a ordem do diaconato à mulher e o sacerdócio a pessoas casadas. Não se trata aqui de seguir o espírito do tempo mas de reconhecer os sinais dos tempos através dos quais o espírito fala..
Lentamente nota-se a necessidade de se reconhecer a dialéctica apenas como processo de abordar a realidade e não como a realidade em si. Trata-se de integrar a lei positiva e a lei natural. Já vai sendo tempo de se transcender a mentalidade polar, masculina não para o outro extremo polar da feminidade mas para a sua síntese num novo processo histórico e humano de realização e afirmação que seria o processo místico integral.
A reespiritualização da sociedade embora com um cunho feminino terá de ser na bipolaridade integrada, tornando-se mais feminina (consciente da sua bipolaridade masculina e feminina equilibradas) no que ela tem de intuição mística.
Os administradores externos do religioso em certos lugares já se esfregam as mãos ao verificarem que hoje as necessidades religiosas se tornam mais visíveis na sociedade, mesmo através de expressões laicas das mesmas. Isto é porém a reacção ao processo erosivo e mesmo ao descarrilamento em que se encontra a sociedade ocidental. A religião embora apática e desajustadamente reage contra a entropia.
A sociedade, tal como as instituições, continua a viver dos rendimentos, na inércia. A procura de religiosidade manifesta por muita gente é uma reacção de pessoas mais sensíveis aos sinais dos tempos que não pode ser mal-interpretada; ela é também contestação do status quo, é a afirmação da necessidade de metanóia das instituições e do processo de pensar. A nostalgia pela tradição, pelo testemunho são uma reacção, são primeiramente uma contestação ao mundo fútil, que humilha o ser humano reduzido-o a material utilizável.
De facto a consciência humana não aceita viver muito tempo na contingência do acaso. Este exagero provoca uma procura instintiva de Deus atendendo a que a essência da pessoa está condicionada à procura do sentido. O eterno problema: de donde vimos e para onde vamos? A marca indelével da chamada à presenciacao do espírito acompanha sempre a pessoa na propulsão do espírito contra o niilismo redutor. As paróquias não poderão esperar uma revitalização da religiosidade popular. O aspecto folclórico é importante, mas a nova consciência humana latente na ciência e na religião exigem um salto qualitativo nas mentalidades e no comportamento e actuações das instituições; é urgente uma nova mentalidade. Esta não suportará a criação dum tipo de padres caixeiros viajantes a correr de paróquia para paróquia. Não se pode permitir que padres se reduzam a bombeiros. Nesse activismo despersonalizar-se-iam e despersonalizariam as comunidades reduzindo-as a entidades formais e não viveiros de vida. O ser humano do novo século, do novo milénio merece mais. Precisam-se menos funcionários – coveiros. Há falta é de parteiras.
A nova exigência corresponde a uma nova espiritualidade, a uma espiritualidade cristã, mais mística e menos grega. O espírito grego, assumido com a igreja de Constantino já chegou ao extremo na sua polaridade. Agora espera-se o advento da igreja mística. Deus não se encontra só na bíblia ou na religião; ele manifesta-se em tudo e em todos.
António Justo
Teólogo