Turquia possível cavalo de Troia da União Europeia?

Acordo desigual entre as fronteiras geogáficas e as fronteiras culturais

A Turquia, à porta da Europa, foi aceite em 1997 como possível candidata à UE e passou a candidata oficial em 1999. A Comissão Europeia recomendou que se iniciassem negociações de adesão e, em Dezembro passado, os chefes de estado europeus e os chefes de governo ratificaram a proposta para uma calendarização das negociações no sentido duma possível integração nos próximos 15 anos.
O Comissário Europeu Gunter Verheugen, um alemão responsável pelo relatório apresentado à Comissão, na linha da esquerda europeia, não vê obstáculo ao ingresso no que respeita ao cumprimento dos critérios democráticos e de justiça de Estado na Turquia.Os partidos conservadores, advogando o estatuto de apenas parceria privilegiada entre a Turquia e a UE conseguiram modificações no relatório, de maneira a possibilitarem a suspensão das negociações ao longo do processo.

Longe duma vista real, a recomendação do relatório parte de algumas reformas turcas realizadas mais no papel, e que não convencem; possibilita porém teoricamente a revisão de promessas imprudentes feitas à Turquia por parte dos políticos da UE em tempos passados.

Por sua vez o Primeiro Ministro turco Erdogan, comprometido com os mais conservadores islâmicos tenta vender gato por lebre a europeus desacautelados ou comprometidos. As contradições que o acompanham ao longo da sua carreira política são caraterísticas para a causa que defende na qualidde de representante duma nova Turquia. A nível privado comprova também o seu maquieaveliso ao mandar as suas duas filhas estudar para o estrangeiro pelo facto de lhes ser proíbido o uso do lenço nas universidades turcas. Erdogan argumenta que a Turquia não é livre ao proibir o uso do lenço, calando as razões bem óbvias dessa proibição.
Tem-se a impressão de que nenhuma das partes põe as cartas na mesa.
O processo modernizador iniciado na Turquia por Ataturk há 80 anos se se tem mantido, deve-se à acção moderadora do aparelho militar, garante da herança de Ataturk, e aos interesses da OTAN na Turquia como membro estratégico nos tempos da guerra fria.
O empenho da esquerda alemã na defesa da causa turca complicarão o processo europeu.

Quem vive na Alemanha chega a ter a impressão de que esta não querer ficar sozinha com o problema turco. Depois de 30 anos de presença turca na Alemanha os problemas só têm aumentado atendendo a que não se integram socialmente.Os ghettos estabilizam-se à volta das suas mesquitas numa sociedade paralela impermeável bastante bem organizada que se afirma na contraposição. Este problema sentido por grande parte da população é considerado tabu pela classe política. A nível económicoe a Alemnha já se encontra preparada e inserida na Turquia. A tática de contenção na crítica ao mundo islâmico abre o negócio às firmas de países fortes nos países do petróleo. Esta não é porém a situação dos países da UE mais fracos que não estão preparados para a concorrência de mercado, além disso a UE não se pode orientar apenas por razões económicas.

As razões advogadas pela esquerda alemã na defesa da entrada da Turquia como mera medida preventiva de defesa estratégica da UE e como esperança duma modernização do mundo islâmico através da porta traseira turca mostram boa intenção. Só que de boa intenções está o Inferno cheio e quem ganha com os votos da população islâmica são os partidos de esquerda até que aquela organize os seus próprios partidos. Na Alemanha vivem já três milhões e meio de muçulmanos. A entrada da Turquia na EU tem um potencial dez milhões de emigrantes para a Alemanha, no dizer de especialistas. A Turquia seria o país da Europa com mais habitantes.
A crença numa adaptação forçada da Turquia ignora a sua história. Enquanto que politicamente a Europa se compreende como uma sociedade secular de valores, sem religião de preferência, a sociedade turca compreende-se como uma sociedade islâmica sem separação entre religião e conduta de vida. O islão determina no pormenor a vida individual, privada, familiar e social; mais que uma mundivisão é uma política. Não há agir político sem motivação religiosa e esta é intolerante perante as outras culturas. A religião (Corão e scharia) é o fundamento legitimador de todo o agir e não qualquer Constituição, para mais ditada por “infiéis”. O processo é prematuro. A UE não se pode reduzir à elite política e económica; também ela não está preparada para se defrontar com valores constitutivos inquestionáveis duma sociedade islâmica ainda na Idade Média e alérgica ao estado laico. A integração total da Turquia na UE nos próximos quarenta anos corresponderia à introdução do cavalo de Troia no sistema laicista da UE. Estou certo que esta situação acordaria uma religiosidade latente na sociedade europeia que, ao sentir-se questionada na sua identidade e na génese dos seus valores, correria também ela o perigo recorrer ao militantismo religioso como garante de identidade…Talvez a vontade política agora expressa mais não seja do que a expressão de desorientação e o desejo inconsciente duma mudança radical, para uma sociedade cada vez mais decadente que precisa de um abanão exterior para se poder reorientar. Dum certo ponto de vista também isto se poderia considerar positivo, o problema seria a questão do preço a pagar.
Só quem não conhece a realidade islâmica na sua componente filosófica, antropológico-sociológica poderá, de ánimo leve, tomar uma posição claramente favorável. A realidade é que o mundo árabe, o mundo islâmico define a sua identidade através duma religião comunitária através dos seus estados ou nos ghettos nas regiões em que se encontram em minoria e não através de fronteiras geográficas.
Actualmente as nações europeias encontram-se num processo de transferência das suas fronteiras naturais para as fronteiras geográficas da UE. Com a entrada da Turquia não se trataria apenas dum alargamento da fronteira geográfica mas sim dum salto qualitativo que implicaria a superação mesmo das fronteiras culturais de que os muçulmanos não abdicam.
A autocompreensão turca, como revelam estudos, não cabe ainda em categorias geográficas e económicas porque ela é ainda meramente religiosa. Estamos perante duas linhas de tradição, duas fronteiras de espaços culturais. Enquanto que a cultura cristã com a sua doutrina de que o seu “reino não é deste mundo” pressupõe uma cultura aberta podendo os indivíduos integrar-se em todas as formas de Estado já o mesmo se não dá com o islão que se baseia não no indivíduo mas na comunidade política de caracter hegemónico, nisto se baseia também a tática de guerrilha própria das sociedades muçulmanas ao longo da história. Quem não fôr paciente e não aceitar esta realidade desperta ressentimentos adormecidos numa época em que a UE se encontra num processo de transferência das fronteiras de espaço geográfico para o espaço cultural.
O processo de integração europeia e a legitimação duma identidade nascente na UE serão questionadas e desequilibradas por uma outra cultura em que religião e política se identificam. Numa época em que a identidade europeia não se encontra ainda estável e em que a religião cristã se encontra à disposição seria questionável, em contrapartida, a imposição duma cultura religiosa reguladora da acção humana a todos os níveis.
Atendendo a que até hoje não houve nenhum debate sério sobre a integração da Turquia na UE e considerando o antagonismo e a incompatibilidade dos dois sistemas de valores, neste momento da história, o mínimo que se exigiria seria que os políticos de todos os estados submetessem a entrada da Turquia a um referendo tal como defende diplomaticamente o presidente francês para a frança. O melhor para os países latinos e árabes seria que o desenvolvimento da sociedade islâmica viesse a possibilitar uma UE também abrangente de toda a área do antigo império romano. Doutra maneira continuará a cimentar-se a posição deficitária dos países latinos na sequência duma luta cultural (Kulturkampf) iniciada no século 15 e que deu o predomínio aos países nórdicos.

António da Cunha Duarte Justo

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António da Cunha Duarte Justo

Actividades jornalísticas em foque: análise social, ética, política e religiosa

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