Não somos educados a acreditar, mas movidos a fazê-lo!
Por António Justo
A paz mundial só pode conseguir-se numa cooperação dialogal comum entre religiões, e entre religiões e Estados seculares, no reconhecimento e respeito recíproco de instituições, crentes, ateus e agnósticos.
Alguns tecnocratas do globalismo (da política, da economia, da ciência e da filosofia) têm dado a entender que, para se estabelecer a paz mundial, é preciso implantar uma ética secular sem culturas nem religiões (uma espécie de patriotismo/crença do Direito). Trabalham no sentido de criar uma nova consciência e, para tal, secularizar a ética e implementá-la de modo a que a Razão-ciência ocupe o lugar da consciência. Querem, para isso, assenhorear-se do conhecimento (um património público da humanidade), calando que este (como ciência, filosofia e religião) é mais complexo e se encontra sempre em processo inacabado, não podendo, como tal, ser petrificado num sistema dogmático exclusivista, seja ele materialista ou espiritualista, nem tão-pouco numa mundivisão fechada, mesmo com o pretexto de servir uma nova ordem. De facto, os fins não justificam os meios e na realidade orgânica tudo cresce de baixo para cima (do elemento para o complexo) e a solução para que, na floresta, todo o solo tenha sol não seria natural optar-se por arrancar as folhas às árvores. Querem criar um mundo unívoco sob a rasoura de uma razão que aposta num pensamento unívoco ao serviço da ciência e da política.
Partem, para isso, do pressuposto que as pessoas e as instituições na procura da liberdade e do bem se orientam só por princípios racionais. Um outro equívoco dos construtores da polis, a nível mundial, é atribuir um caracter “divino iluminista” à razão/inteligência, pensando que a razão é, por si só, capaz de penetrar nos enigmas do mundo e do ser humano apenas com os instrumentos da observação, experimentação e cálculo, próprios do método da ciência positiva, sem contemplar a espiritualidade transcendente.
Uma tal tentativa levaria a um totalitarismo materialista servido pela absolutização de uma razão prática, que se quer como directriz ao serviço da eficácia utilitária e pragmática, não só para uma eficiente orientação e controlo da humanidade, mas também como orientação da interpretação do mundo.
Esquece-se a advertência do filósofo Pascal que constatava que a vida e o Coração têm razões que a Razão desconhece.
O que acho mais preocupante é ter de constatar, nalgumas teses do Dalai Lama apresentadas no livro “Um Apelo ao Mundo”(1), onde, também ele, serve os propósitos da luta cultural marxista.
No meio de muitas frases edificantes e cativantes encontram-se algumas teses fundamentais que passam desapercebidas, mas que servem o intento referido, com a cobertura e a embalagem do Zeitgeist.
O Dalai Lama é um ilustre budista que faz tudo pelo budismo e, a partir dele, empenha-se na construção da paz mundial. Pelo que observo de algumas suas teses, serve-se da filosofia existencialista europeia e de Feuerbach, que tem muito de comum com o budismo, para propagar a criação de uma ética secular universal, uma espécie de decálogo da razão de caracter imanentista e materialista (Em jogo está a negação da capacidade humana para a transcendência, a negação de Deus para assim se atirar com as religiões e se poder criar um tipo de religião secular universal de “espiritualidade” materialista no sentido de um futuro governo mundial-ONU). Este artigo é a sequência do texto “O Dalai Lama no Barco do Mainstream” (2).
A sociedade do “pensar politicamente correcto” cria os seus tabus para melhor implementar os seus objectivos, e aproveita-se da boleia de ícones e personalidades que, pelo respeito que gozam ou merecem, não são questionadas. Neste sentido ressalta à vista a esperteza como ONGs se aproveitam do Dalai Lama no sentido dos seus objectivos (Isto é legítimo e não minora os galardões do Dalai Lama, tornando-se, porém, mais eficiente, quando ninguém nota o que acontece por trás dos bastidores; isto sem excluir o direito à dúvida e ao erro que nos faz avançar!). A iniciativa da criação de uma Assembleia Parlamentar Mundial também não pode ser rejeitada de princípio e como tal justifica muitas diligências no sentido de o preparar.
A pretexto da razão e da ciência comercializa-se uma ideologia com os pré-requisitos para, no meu ver, uma transformação socialista da sociedade (A China manda cumprimentos!…). Nem em nome de uma sociedade aberta, nem de um racionalismo crítico (3), nem, tão-pouco, uma alegada necessidade de se estabelecer uma supraestrutura mundial para a paz, podem legitimar uma organização superintendente da inteligência e da história da humanidade (mesmo em nome de uma ética secularizada em nome da razão!).
Naturalmente que o Homem é ele com as suas circunstâncias não podendo ser reduzido às circunstancias, por muito importantes que elas sejam para o seu desenvolvimento. Em nome do bem geral da sociedade não se deve passar à sacarificação dos diversos “biótopos” culturais e do indivíduo…
Uma atitude meramente mecanicista que prescinda da transcendência, nas mãos de uma superorganização, corre o perigo de considerar o argumento acima das consciências individuais e nacionais (exemplo do estalinismo, maoismo, nazismo, teocracia do Irão, etc.). Não chega mudar o mundo é preciso fazê-lo interpretando-o.
O Dalai Lama afirma a ética contra a religião como se só fosse possível uma posição exclusiva dizendo: “as religiões conduzem à guerra, a religião é algo aprendido, enquanto a ética é inata”! Fala no sentido de algumas ONGs (4) em torno da ONU, aplanando-lhes o caminho, afirmando:” Seguindo princípios de uma ética puramente secular tornar-nos-emos pessoas mais descontraídas, solidárias e sensatas”. E, para confundir, questiona a transcendência das religiões monoteístas dizendo:” vejo cada vez mais claramente que o nosso bem-estar espiritual não depende da religião, mas da nossa natureza humana inata”. Naturalmente, como tudo não passa de matéria adiante, tudo começa e acaba nela!
Em vez de procurar uma via inclusiva e de esclarecer a relação entre religião e moralidade, o Dalai Lama opta, em termos de poder, pela exclusão da religião, para se pôr ao serviço de uma ideologia materialista secular sob o pretexto de uma ética natural da racionalidade.
(Não quero aqui desvalorizar a laicidade, nem o papel da relação razão-ciência nem o aspecto também positivo que a discussão materialista tem desempenhado em relação a um espiritualismo desencarnado. De facto, se dou uma vista de olhos pela natureza, pela cultura, pela sociedade e até pelo indivíduo, reconheço que tudo neles é complementar, o que, na relação com o Homem e com a sociedade, fala a favor de uma estratégia de inclusão das diversas partes e a isto encoraja-me também o Vaticano II na sua preocupação pela conexão da heteronomia!)
Segundo o Dalai Lama, na continuação da filosofia materialista e da sua religião (que propriamente ele não considera religião), religião seria um constructo social e o bem-estar espiritual é natural (produto da natureza) não tendo nada a ver com uma qualidade religiosa inata nem com um re-ligar (religar o Homem a Deus, o humano ao humano, numa relação transcendental), no sentido das religiões monoteístas. (Chega-se a ter a impressão que aqui o Dalai Lama segue as mesmas pegadas da agenda Gender que quer reduzir características humanas, provenientes de diferenças biológicas, a meros resultados da aprendizagem adquirida através da cultura, no percurso da História.)
O filósofo Wittgenstein advertia:” Os limites da minha língua significam os limites do meu mundo”! Uma adequada paráfrase poderá ser: os limites das minhas perguntas são os limites da minha inteligência (Como esta é de natureza aberta, deixa sempre, a nível intelectual, uma porta aberta para a dúvida metódica).
Hoje mais que nunca precisamos de uma crítica à ideologia. Se muitos se queixam que na Idade Média tudo circulava em torno das catedrais e no mundo árabe tudo circula em torno de Meca, não têm a distância suficiente para notar que hoje na sociedade secular ocidental tudo circula em torno das catedrais da Banca e da ideologia do “politicamente correcto”.
O Dalai Lama serve aqui o plano marxista anti-cultura ocidental na sua luta contra os fundamentos da cultura ocidental e em especial contra o cristianismo, que circula todo ele em torno da filiação divina da pessoa humana e numa visão linear da História.
Na discussão filosófica e científica encontra-se também “provado” o caracter inato (congenital) da religião e não apenas o da ética, como advoga o Dalai Lama.
Já Charles Darwin, no seu livro “A Descendência do Homem e a escolha sexual de reprodução” descreveu uma evolução biocultural bem sucedida da religiosidade e das religiões para um monoteísmo.
Investigações sociológicas, antropológicas, psicológicas e filosóficas demonstram que a religiosidade é inata. A inclinação religiosa é inata e a fé pertence ao Homem, como se observa nos primórdios da humanidade (animismo, rituais ao sol, ao fogo, ao vento, etc.) não podendo ser reduzida apenas a algo adquirido culturalmente.
Tal como mostram muitos estudos sobre o fenómeno religioso, o diretor de um projeto de pesquisa (com 57 eruditos de 20 países), Dr. Justin Barret, do Centro de Antropologia e Mente da Universidade de Oxford, conclui, como resultado do mesmo, que “ religião é um aspecto (5) comum da natureza humana e o pensamento humano está “enraizado” em conceitos religiosos. Isso sugere que as tentativas de suprimir a religião tendem a ter vida curta, uma vez que o pensamento humano parece estar enraizado em conceitos religiosos, como a existência de deuses ou agentes sobrenaturais, a possibilidade de vida após a morte, e de algo anterior a essa”.
Outros investigadores do fenómeno religioso e ético dizem ter observado manifestações desses fenómenos até em grupos de primatas. Há macacos que ao pressentirem tempestades fazem a dança da chuva ou quando morre o semelhante ficam em silêncio, de olhar perdido e “pensativo” perante o morto (Naturalmente que estes comportamentos em parte semelhantes a humanos não permitem conclusões apressadas (6).
O facto de a religião proporcionar a visão mística e treinar a capacidade de sair do “aqui e agora” estimulou no Homem a possibilidade da passagem da inocência comum da apatia animal do paraíso terreal, para um estado dialogal de ouvir e dar resposta (Adão e Eva desenvolvem a personalidade numa relação inicialmente medrosa com um Tu transcendente – mais tarde Jesus Cristo destruiu o medo repondo a dignidade no Homem ); daqui surge o assumir responsabilidade no pensar próprio e fazer erros (a capacidade da culpa e do erro, num processo de chamamento – do Adão, onde estás? -, torna-se no motor do nosso desenvolvimento, numa aventura de “erro e tentativa”; esta dinâmica é consagrada no encorajamento da “culpa feliz” que passou da liturgia da Vigília pascal também para o pensamento secular (7). A luz e o chamamento divino levaram-nos a voar em vários mundos (emocional e mentalmente).
A religiosidade dá relevo à capacidade humana de se maravilhar e de conseguir sair do “aqui e agora” sem deixar de se empenhar responsavelmente pela polis!
Numa sociedade que se quer, cada vez mais só aqui e agora, de um relativismo e utilitarismo aferido ao mercado, a espiritualidade parece só vir complicar e distrair do negócio da construção de uma polis que se quer só mercado sob um só poder. Não questiono aqui a ONU/NU, a Carta das Nações Unidas, a Declaração dos Direitos Humanos, (8) nem as Convenções, motiva-me apenas raciocinar sobre o espíritos que se aninham em torno delas. (Também não pretendo justificar os males e erros dos poderosos que, muitas vezes, se usaram do medo e da religião como meio de educação e disciplinação do povo, como também hoje é de reprovar o uso dos medos e de leis (do “politicamente correcto”) que tenham como mero objectivo controlar e domar o cidadão, quer por poderes seculares quer por poderes religiosos). Cada tempo tem o seu movimento e mesmo dentro do espaço tempo é essencial não só viver no aqui e agora, mas contemplar também o horizonte que nos leva a levantar o rosto e a viver a existência à luz de uma esperança que chama toda a natureza à imagem do que faz o Sol em relação ao planeta.
Num romance que li há muitos anos, conta-se que um humano foi cruzado com um macaco. Alguém matou aquela criatura que é meio humana, meio macaco. A questão ética que se põe no caso é: aquele que matou este ser assassinou uma pessoa ou matou um animal? Em retrospetiva sobre a sua vida chegaram à conclusão que era um ser humano porque o tinham observado a sacrificar num altar um bocado de carne, ficando assim claro que se tratava de um ser humano porque revelava sentimentos religiosos. Assim o que o matou foi um assassino…
Num mundo necessitado de paz, a estratégia para se resolverem os problemas individuais e sociais, não pode seguir a via da destruição da diferença e da variedade, mas sim o caminho da aceitação e da tolerância mútua, numa consciência de subsidiariedade e complementaridade.
© António da Cunha Duarte Justo
Teólogo e pedagogo
“Pegadas do Tempo”