Dúvida nas crenças laicas e nas crenças religiosas


Razão Religião e Espiritualidade

António Justo

Na praça cursam, em nome da Verdade, contribuições aparentemente evidentes mas ao serviço da desinformação. Um nexo de irreflexão camuflada de ideia abre caminho entre pessoas muitas vezes distraídas pela melodia acompanhante.

“Quem crê não sabe”, “A religião inventa, a religiosidade descobre”; “A religião alimenta-se do medo, a espiritualidade da confiança”; “ o esperar e a incerteza atingiram, agora, o seu fim”, apregoam os barateiros do mercado. Estes sabem que as pessoas anseiam por experiência e segredos interiores, devido ao desencantamento do mundo. As pessoas querem ser reconhecidas e ser integrais numa sociedade que as despreza e divide continuamente. O que muitas pessoas procuram é auto-realização. As ofertas do mercado, muitas vezes, reduzem-se a medidas de fuga de si mesmos e da responsabilidade social. O objectivo da espiritualidade não é auto-realização. A religião não promete a segurança deste mundo e está consciente que a fé não é (só) desejo e anseio. A fé implica uma dúvida colocada ao mundo. Pressupõe aceitar trazer consigo a cruz da dúvida. A espiritualidade não implica a liberdade de fugir à razão. De facto quem crê sabe e quem sabe crê! A felicidade surge do estrume da dor.

Tem-se a impressão que, na feira da espiritualidade, tudo é bom e se adquire, de graça. Deparámo-nos com frases feitas, de mistura indiferenciada, com a pretensão de revelar verdades a saldo, com tudo incluído no preço. E o público cansado, levado pela embalagem, sem se preocupar com o que se encontra dentro dela, aceita o embrulho pelo conteúdo. A música acompanhante é tão encantadora e o apelo ao sentimento tão colorido que não deixa lugar para a enfadonha razão fazer perguntas. Para os negociantes da auto-realização o conteúdo é arbitrário e o que lhes importa é formar opinião através da manipulação. Oferecem espiritualidade wellness a pacotes. A massa que anda na rua só tem no bolso uns trocos de cultura. Não tem culpa, só aguenta pensamento barato, porque já traz carga a mais na sacola; a palavrinha mágica que tudo justifica e faz das fezes ouro denomina-se “opinião”; opinião não precisa de fundamento nem de argumentação. O fundamentar enfraqueceria a convicção. “A principal causa dos problemas do mundo de hoje é que os obtusos estão seguríssimos de si, enquanto que os inteligentes estão cheios de dúvidas”  Bertrand Russel.

Os agentes do mercado ideológico e económico estão empenhados em baralhar e destruir os ecossistemas culturais (Nações, religiões, etc.) e até os pequenos biótopos individuais. Só lhes interessa o indivíduo, a opinião, afirmações superficialmente lógicas e estatísticas. O indivíduo, fora dum sistema, perde o significado e facilmente se vence (o ecossistema protege o indivíduo dando-lhe a possibilidade duma identificação integrada). Os feirantes pretendem o caos recorrendo, para isso, ao dogmatismo da própria opinião. Quer-se no Ocidente pessoas revoltadas das religiões e da cultura; pretende-se pessoas revoltadas contra o próprio ecossistema cultural e para não se ter de argumentar basta insurgir-se contra a autoridade do ecossistema, identificando autoridade com capitalismo, com imperialismo ou abuso, sem se proceder a uma análise fundada das vantagens e desvantagens de cada sistema, seja ele mais capitalista ou mais socialista. Quer-se a vida gratuita sem contrapartida como se a espiritualidade ou a religião fossem o Exército da Salvação. Um irrealismo baseado num optimismo egoísta superficial parece pretender que a civilização ocidental se torne desconfortável.

Espiritualidade não é o clímax de welness espiritual

Quem contrapõe religião a espiritualidade reduz o problema à procura do sexo dos anjos. Deslumbrados com o brilho do jogo das palavras afirmam a espiritualidade e negam a religião, esquecendo que espiritualidade é uma qualidade do espiritual e concretamente uma determinada vivência religiosa: a experiência de si em relação com o outro num determinado contexto. Deixam-se enganar, como se uma qualidade existisse por si, como se um sentimento fosse possível sem corpo, ou se a espiritualidade se deixasse reduzir a um sentimento ou orgasmo espiritual.

A religião incorpora o espírito em diferentes espiritualidades. Cada ecossistema religioso (religião) com as suas espiritualidades constitui um cosmo de contextualização geográfico- histórica, cristalizado na língua, nos seus credos e utopias: a atmosfera do ecossistema.

Diria a religião está para a vela como a espiritualidade para a sua chama. A espiritualidade, a luz são a essência da religião. O sol, a luz é o movimento do movimento. O facto de a fome ser verdadeira e mais profunda que o aparelho digestivo, não nos justifica que neguemos a boca, devido às cáries dentárias que esta possa ter. Uns negam a fé, outros a razão como se estas não fossem apenas os dentes para ajudarem a digerir uma mesma realidade dura. Por muito espiritualizada que queiramos a boca, a realidade pressupõe nela os dentes para conseguirmos uma alimentação equilibrada. A espiritualidade, tal como a religião, embora razoáveis não se deixam aplainar pela rasoura da razão, apenas purificar. A razão põe tudo em questão como se o seu questionar fosse a razão das coisas. A razão sincera, como a fé sincera questionam-se a si mesmas. Uma e outra são como estrelas que nos levam a olhar para mais alto, para mais longe, sem negar o passado nem se agarrar a um futuro ilusório.

Seria uma regressão na história e no desenvolvimento querer ignorar o salto dado por Eva e voltar ao indefinido primitivo por muito gratificante que essa perspectiva se ofereça. A religião alerta-nos para a necessidade de religar o que a razão separou mas sem abdicar dela. A religião não se pode ficar pela crença estática num paraíso distante nem tão-pouco pela opinião individual. Ela quer acordar para o Sol que se encontra em cada átomo de nós em cada pessoa e instituição, no dia e na noite, num processo de encarnação e ressuscitação. A Realidade encarna na terra para com ela se elevar.

A Igreja aponta para Deus sabendo que a sua realidade se encontra no outro e não só nele. Dá uma perspectiva a uma espiritualidade não só pessoal. O facto de o Sol se encontrar em toda a natureza não pode ser reduzido a ela nem tão-pouco a um seu elemento. A espiritualidade não é o todo, não é Deus. Se o fosse o eu não seria.

A religião é também um sistema humano organizado com regras ao serviço duma pedagogia do divino onde as regras são para se dissolver tal como o sol dissolve o arco-íris que ele mesmo originou. O arco-íris, porém, no seu ordenamento torna-nos conscientes para a multiplicidade da cor na luz: o humano no divino. Cada cor da verdade tem o seu momento. O orgulho duma razão iluminada esquece uma simples verdade: no mundo do ser a luz só se percebe olhando para o escuro / a sombra. A luz sem sombra implicaria a ausência de todo o ser. O racionalismo puro produziria um Deus puro, indiferente ou com desprezo pela criatura. A arrogância da luz dos racionalistas iluminados é tão perigosa como as trevas do fanatismo crente. As duas são fanáticas porque excluem o outro, o diferente, de si. Só reconhecem a própria luz olhando para a escuridão do outro, desconhecendo que a escuridão do outro é a sua luz.

A religião como supra-estrutura cultural acarreta consigo a divisão e a limitação tal como a consciência do eu individual pressupõe a auto-afirmação perante o outro (um certo confronto dialéctico). A divisão porém não é o fim mas sim o caminho para se chegar à união. Instituições como pessoas, no seu processo de individuação (afirmação e demarcação), obedecem a dinâmicas semelhantes. Tal como o indivíduo não termina em si mesmo também a sociedade não deve ser fim de si mesma; encontram-se num processo a caminho da comunidade num horizonte aberto (Alfa-Omega). As religiões são sociedades com diversas espiritualidades em cada uma delas a caminho da unidade / comunhão. A religião não é mais que uma ponte destinada a religar o separado, tal como a razão é também uma ponte para o criado científico, são perspectivas cpomplementares da mesma realidade. O Cristianismo é mais que uma religião; nele Religião e espiritualidade não estão em contradição e Deus e Homem também não.

Cada religião, com o respectivo Deus e correspondente mundividência de Homem e mundo, faz parte dum sistema de ecossistemas naturais e culturais, com expressão própria mas com necessidade de interpretação e de desenvolvimento. Para se poder falar com propriedade de termo, em questão de espiritualidades e de religiões, teria de ser feita uma hermenêutica das diferentes religiões e culturas bem como das diferentes espiritualidades e éticas.

Lógica e dialéctica habitam na mesma casa, não se podendo afirmar que religião é lógica e espiritualidade é dialéctica como pretendem manipuladores de conceitos metendo tudo no mesmo saco.

A religião como a razão alimentam o ego para que este se torne semente numa terra (biótopo) fecunda e ser árvore na floresta da comunidade humana.

António da Cunha Duarte Justo

Teólogo e Pedagogo

antoniocunhajusto@googlemail.com

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Publicado por

António da Cunha Duarte Justo

Actividades jornalísticas em foque: análise social, ética, política e religiosa

2 comentários em “Dúvida nas crenças laicas e nas crenças religiosas”

  1. BELÍSSIMO, prezado amigo e sábio escritor António Justo.

    Aceite nossa admiração e nosso fraterno abraço
    CV

  2. Caríssimo
    Professor António Justo,

    Aceite os meus parabéns pelo texto MAGNÍFICO que nos colocou à nossa disposição.
    Mais um!
    Fraterno abraço de muita admiração.
    Paulo M. A. Martins

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