O lenço (véu) para a cabeça
Na R. F. da Alemanha acentua-se o conflito em torno do uso do lenço por funcionárias de religião islâmica. Os estados da Baviera, do Baden Württenberg e de Hessen preparam uma lei para proibir o uso do lenço da cabeça a professoras no exercício da sua função escolar.
Na discussão aqui na Alemanha manifestam-se principalmente aqueles que reduzem o lenço a um bocado de pano e falam de intolerância e de rassismo e aqueles que temem perder as aquisições da sociedade laica. Escondem-se por detrás das argumentações principalmente lutas de duas concepções: a duma ordem ocidental questionada e a de uma ordem islâmica tabu. De premeio muitos descontentes com a ordem ocidental (com argumentos sólidos contra o turbo-capitalismo) e que vêem na questão uma oportunidade para atacarem o poder estabelecido e alguns preocupados com a relação Estado-Pessoa.
Indirectamente está em questão um Islão, que se encontra ainda na sua Idade Média, e a que falta a experiência dum renascimento humanista, e duma contestação protestante renovadora e dum certo iluminismo purificador. Tradicionalistas defendem um islão entrincheirado num colectivismo ideológico contra tudo o que cheire a individuação ou modernidade. Usam-no como instrumento e sinal da propagação fundamentalista. Pretendem que todas as mulheres sejam obrigadas a trazer o lenço, como testemunho da única ordem reconhecida, a islâmica.
Naturalmente que às mulheres não devem ser reduzidos os já de si escassos direitos a nível público! Seria porém ingénuo reduzir o porte do lenço a um testemunho pessoal quando, na Europa, os mais agressivos defensores do véu e do Ghetto são muitas vezes pessoas (homens) académicas motivadas por uma missionação político-religiosa que instrumentaliza o lenço e as mulheres para os seus fins.
O princípio da neutralidade do estado é uma prática não aceite pelos estados muçulmanos dado que o Islão é uma religião política com uma forma de estado que é a teocracia sendo inseparável a religião do estado.Ele compreende-se como um corpo e define-se na demarcação cultural. Direitos humanos individuais e secularização, tais com são conhecidos nas sociedades ocidentais são-lhe estranhos e inaceitáveis. A religião do Corão reduz o homem a ser religioso sendo a religião ao memo tempo a forma de vida, uma ordem política que envolve e obriga moralmente a pessoa na sua totalidade e nas suas acções e tende para o totalitarismo, como escreve o escritor marroquino Ben Jelloun. É natural que o princípio da neutralidade é uma espada de dois gumes e questionável desde que haja proibição ou obrigação de qualquer coisa. O princípio de neutralidade numa civilização cristã também pode correr o risco de ser descriminador da maioria…
Seja embora verdade que perante a lei devam ser todos tratados segundo o princípio de igualdade não se pode justificar a equiparação de ideologias e religiões até porque neste aspecto o Corão é incompatível com a Constituição do estado alemão, tal como afirma Peter Scholl-Latour, grande conhecedor do mundo islâmico. O porte de lenço por professoras iria contra a Constituição democrática do estado que defende a igualdade de direitos dos sexos. Os tradicionalistas não reconhecem poder superior ao islão, pelo que o porte do lenço pode ser testenunho do não reconhecimento da Constituição. Ninguém é obrigado a ser funcionário do estado.
O lenço é muitas vezes marca de diferenciação social e ideológica. É símbolo de intolerância religiosamente motivada. É um símbolo com efeito político. É sinal de coacção e de violência( cfr. Talibans, Irão, etc.), é símbolo de retrocesso, de repressão da mulher e sinal da rejeição da civilização ocidental e da modernidade. Não é sem razão que ainda hoje é proíbido o uso do lenço em repartições públicas na Turquia.
O lenço é sinal da relação dos sexos que se revela na separação estrita da esfera privada da esfera pública e que se expressa no encobrimento da mulher, subjugada à privada. Representa a função de guarda dos homens. O Corão (sura 4,38) diz que os homens são superiores às mulheres e gozam de precedência (2,228) perante Deus. Segundo o direito islâmico o homem para se divorciar basta que diga três vezes a fórmula “eu divorcio-me de ti” perante a mulher, enquanto que a mulher para o fazer tem de o declarar perante um tribunal. Uma palavra do homem vale por duas da mulher. Um homem de religião islâmica pode casar-se com uma mulher não islâmica, porque a religião se transmite automaticamente do pai para filhos, não da mãe; a mulher só pode casar-se com homem muçulmano. Por isso muitos alemães se vêem obrigados a converter-se e até a circuncisarem-se para poderem casar com mulheres turcas. (Naturalmente que a circuncisão não é exclusivado do mundo árabe, ela pode refectir um aspecto cultural, como também pode ser usada como meio de identificação e de demaracação).
Embora o uso do lenço não seja específico só dos meios islâmicos, ele é revindicado por fanáticos como sinal da fé islâmica e meio de controlo dum género enfraquecido religiosa e culturalmente. A mulher pertence à esfera privada e o homem é quem domina. A individualidade da mulher tem que desaparecer na massa. Que fizeram os homens islâmicos do seu sinal de reconhecimento islâmico público, o turbante?
O Corão (24,31 e 33,59) fala do encobrimento da mulher para que “não sejam importunadas e sejam reconhecidas”. Ao contrário do que acontecia no mundo árabe onde a mulher era totalmente indefesa e sem direitos, hoje o homem já está mais civilizado e educado, não precisando a mulher de ser defendida desse modo.
Um debate baseado num idealismo ingénuo que coloca a tolerância acima de todos os outros valores seria fatal para a democracia e mesmo contra o desenvolvimento do Islão porque apoiaria os extremistas dando razão aos retrógrados que obrigam as mulheres a trazerem o lenço e que defendem o gheto e o apartheid dos sexos. A comparação entre cruxifixo e lenço como símbolos religiosos é errada. O direito de liberdade de opinião não pode ser princípio justificador suficiente da veracidade de uma conclusão, nem qualquer comparação é automaticamente legítima.
É compreensível o medo de muitos muçulmanos perante uma sociedade que perdeu muitos dos seus valores tradicionais e que apresenta muitos sinais de decadência. Alguns argumentam que “o cristianismo falhou” não querendo eles incorrer nos mesmos “erros”. A falta de valores expressa na falta de espinha dorsal, na desmontagem da família, na instrumentalização da mulher como objecto sexual, bairros de lata, cultura de sexo pervertido, drogas, trabalhar até cair e uma atitude antireligiosa, são elementos que apelam ao instinto de pessoas religiosas de outras culturas a refugiarem-se no seu Ghetto e na sua verdade única; refugiam-se em práticas externas conscientes de que a tolerância apregoada mais não é que uma fraqueza duma sociedade de si já decadente. Nestes meios há uma explicação suficiente para tudo: ”o Ocidente é o culpado de tudo”… Tolerância tem os seus limites, não devendo capitular perante a intolerância. Enquanto que na sociedade ocidental, o valor do indivíduo, o estado de direito e a liberdade são valores constitucionais sagrados, no islão o indivíduo só tem consistência dentro do grupo não tendo o direito à individualidade; o estatuto da mulher está na dependência do homem. O Corão, como é interpretado hoje, é contra qualquer fundamento da ordem democrática livre.
Na discussão é necessário ter em conta o fomento de um islão moderno. Seria anacrónico voltar à Idade Média, cendendo a uma intolerância que exige tolerância. Na nossa sociedade há crentes democratas que se riem dos valores cristãos e precisamente esses mesmos revelam-se como puros apologetas de tradições obsuletas, considerando tradições culturais como valores superiores aos valores individuais da pessoa., refugiando-se numa casuística de defesa de valores secundários em desfavor dos valores principais que deveriam ser inalienáveis da pessoa humana. Naturalmente que, para muitos homens, não é irrelevante o facto de que a modernização do islão terá como consequência o retrocesso de um machismo ideal priveligiado e ainda protegido na sociedade islâmica onde a lei do mais forte parece pervalecer. Naturalmente que a lei do mais forte prevalece também no turbo-capitalismo onde o factor religioso é mais visto como factor de distracção. Não se trata aqui de defender um turbo-capitalismo interessado no seu domínio geo-estratégico sobre as regiões islâmicas ricas em óleo, nem de aceitar o imperialismo dum islão hegemónico e agressivo, baseado num Corão contraditório em que os fins justificam os meios. Trata-se de estarmos atentos à luta das culturas que instrumentalizam as pessoas em nome de quaisquer princípios ou sistemas. Sob uma perspectiva religiosa e de luta intercultural é compreensível uma luta quase desesperada dum mundo instintivamenete religioso que se vê questionado por um turbo-capitalismo que não respeita valores culturais e define o homem apenas como factor e resultado do trabalho. Uns lutam por uma golbalização unilateralmente económica, outros combatem por um islamismo global.
O problema não estará certamente no lenço que mulheres possam trazer, mas sim nas ideias que se escondem debaixo das cabeças tapadas pelos lenços e nos seus fomentadores. Certo será que o desenvolvimento do Islão e a libertação dum islão machista actual só poderá ser alcançado com uma revolução iniciada pela mulher islâmica. É importante apoiar os movimentos das mulheres islâmicas que lutam contra as peias impostas subrepticiamente por uma sociedade macho. Zafer Senocak no seu livro “Zungenentfernung” diz que o “encobrimento da mulher é o símbolo duma tradição intacta dum sistema dominado pelo homem”. (1)
António da Cunha Duarte Justo
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(1) Num mundo em que o homem se torna cada vez mais explorador do homem, é importante que as religiões se tornem as garantes do Homem e da sua dignidade. Naturalmente que não sou culturalmente eunuco, defendo uma defesa intransigente dos valores humanistas, das liberdades pessoais, da igualdade de direitos entre homens e mulheres de todas as raças e de todos os credos, como aprendi no meu meio familiar e nos Salesianos onde recebi grande parte da minha formação humanista. É difícil escrever-se sem ferir sensibilidades religiosas; a luta porém pela construção de uma sociedade mais justa e fraterna não deve poupar as instituiões religiosas na consciência porém que estas são necessárias mas em processo.