O Impasse Cultural
António Justo
Muhammed Sven Kalisc, o primeiro Professor universitário para teologia islâmica em Münster, Alemanha, duvida da existência histórica do profeta Maomé. Diz que não se pode provar a existência nem a não existência mas que ele tende para a não existência. “Maomé foi sempre uma área de projecção. Na realidade não se trata duma verdade histórica, mas duma ficção teológica” refere o professor em “DIE ZEIT”. Argumenta que uma teologia ensinada numa universidade moderna tem que se submeter aos métodos do esclarecimento (iluminismo) tal como aconteceu com o Judaísmo e com o Cristianismo.
Não será exigir demais querer aplicar a grelha modernista, também ela míope, a uma cultura ainda encerrada em plena Idade Média?
Com as suas afirmações o professor é contestado pelas organizações muçulmanas na Alemanha e desiludirá a conveniência da política alemã condicionada a dar graxa e interessada em integrar os muçulmanos no intuito de transformar os grémios muçulmanos em organizações semelhantes às cristãs. Para o professor Kalisc o problema está no facto dos grémios islâmicos titulares do ensino da religião “excluírem a investigação crítica histórica na universidade”, por estarem mais aferidos ao poder e apenas interessados em estruturas autoritárias. Kalisc justifica-se referindo-se à fidelidade à Constituição da RFA (na defesa dos direitos fundamentais do cidadão) a que também as agremiações muçulmanas se deverão submeter.
A sua missão de Professor compromete-o a tomar posição em favor da liberdade científica. Ele questiona-se pelo facto de no tempo de origem do Islão não haver fontes históricas de referência fora dele além da grande diferença entre os testemunhos arqueológicos das fontes muçulmanas e os das fontes não islâmicas. Não se encontram fontes originais escritas islâmicas nos dois primeiros séculos do islão e “onde as há põe-se a questão da autenticidade”.
À pergunta do problema da explicação da existência duma religião sem fundador, Muhammed Kalic responde “que uma nova religião pode originar-se a partir da cisão duma religião mais velha” e que vê como possível que “ o Corão, pelo menos em parte, é um texto cristão primitivo” e que no século VII, cristãos Árabes se terão separado do Irão e de Bizâncio podendo ter havido razões políticas para a variante do cristianismo para apoio do novo reino.
Para ele, o Islão seria uma forma de vida religiosa e uma tradição espiritual. Cada pessoa deve com a sua razão decidir o que deseja assumir da tradição. E continua: “A ideia de um islão uno é uma ficção cultivada tanto pelos fundamentalistas religiosos como pelos inimigos do islão.”
O Professor Kalic compreende-se como um muçulmano que apoia muçulmanos liberais.
Um islão que não coloque nada em questão e que se não deixe pôr em questão correrá sempre atrás do desenvolvimento da História entorpecendo em si mesmo. Por outro lado ao reduzir o estar do Homem à condição religiosa regulamentando-o em todos os sectores da vida criará muita frustração que se expressa depois na violência e numa sexualidade em estado de emergência. Isto conduz a uma atitude de hipocrisia que vive à custa do mais fraco. Por outro lado, o sentimento de impotência conduz à incapacidade de conseguir compreender o mundo e de o enfrentar de frente. A violência passa a ser um elemento integrante do próprio sistema, sempre à caça do mal fora dos próprios muros.
Esta crítica académica não será compreensível no meio islâmico habitualmente fechado em si mesmo e contribuirá para reacções ouriço-cacheiro e também para uma reflexão crítica por parte de muçulmanos liberais.
É verdade que a religião não pode ser submetida apenas à matriz racionalista. O agir da religião e daqueles que se reportam a ela deve ser, porém, submetido à razão. Uma pergunta à qual não escapam muçulmanos e não muçulmanos é o facto de o terrorismo a que se assiste no palco internacional ser quase de exclusiva responsabilidade muçulmana. Outra questão é o facto da exigência muçulmana de afirmar a sua religião nas sociedades para onde emigram e aceitarem, sem se pronunciarem contra, a perseguição dos cristãos em todos os estados de cultura muçulmana. Onde fundamentam a sua posição contra direitos humanos individuais bem como a discriminação da mulher. Até que ponto o Corão permite o diálogo e possibilita activamente a paz? Kalic luta, à sua maneira, pela abertura duma sociedade fechada e atolada na estagnação! Também o Cristianismo teve de dar a cara ao renascimento na passagem da Idade média para a Época moderna. Se é verdade que a filosofia renascentista se podia fundamentar biblicamente também é verdade que o Islão, se permitir o instrumentário duma teologia, não reduzida a mera jurisprudência, encontrará oportunidade de crescer na continuidade.
Quem aprisiona Deus faz do Homem verdugo do Homem
Os muçulmanos de cunho europeu poderão reformar o islão e abrir-lhe perspectivas para o futuro. Doutro modo este perpetuará a frustração e a inveja envergonhada no próprio povo e tornar-se-á um grande problema também para as sociedades para onde emigra. O potencial de conflito já presente nos guetos das grandes metrópoles, oportunistamente ignorado por políticos e intelectuais, no futuro, tornar-se-á fatal para a relação entre muçulmanos e não muçulmanos na Europa.
É irresponsável continuar a haver crianças turcas (da terceira geração) que nascidas na Alemanha chegam à escola sem saber alemão. Fechadas na sua sociedade não estão preparadas para responder aos desafios da sociedade maioritária. Sem perspectivas reais resta-lhes a frustração, o horizonte da Mesquita ou o ressentimento contra uma sociedade que os não soube defender e promover, ou ainda a revolta inconsciente contra os pais que os mantiveram prisioneiros no hermetismo da própria cultura.
Nenhuma cultura, nenhuma religião tem o direito de aprisionar Deus para depois, em nome dele, aprisionar o Homem. O mesmo se diga em relação à política – Estado e Povo. Deus não quer súbditos nem a nação precisa de escravos. Também, nenhum pai ou ideologia deve arrogar-se o direito de acorrentar o filho, o membro à própria mundivisão, tolhendo-lhe um caminho e um horizonte próprio. Toda a religião tem muita riqueza a transmitir. Perde porém a razão quando se torna um estorvo à emancipação e não se deixa questionar criticamente por conhecimentos novos. Ela terá de manter a balance da relação indivíduo-comunidade, apostando prevalentemente na pessoa para que esta se descubra comunidade.
A religião corre o perigo de se tornar anacrónico quando se tem de argumentar com a Constituição para defender o cidadão de arbitrariedades da religião, como acontece na questão da discriminação da mulher e da privação de direitos humanos. O islão é intrinsecamente contra a laicidade, não admitindo a liberdade de pensamento e de consciência, nem outra referência ética e religiosa que não seja Maomé e Corão no sentido duma hegemonia teocrática. O Islão terá que ter lugar para a sociedade civil com espaço para o cidadão.Tal como ocidente foi a religião que deu orige
António da Cunha Duarte Justo