Confluência de Experiência e Interpretação

O cientista faz, o artista realiza e o crente celebra
O Homem na sua essência é Cientista, Artista e Crente

António Justo

O português, Antero de Quental, ao questionar-se sobre a verdade diz: “ A Religião chama-lhe Deus; a Ciência chama-lhe ideia…só a Arte fala do Homem e do mundo… A metafísica e o espiritualismo só poderão ser destruídos quando, ao mesmo tempo, forem abolidas a razão e a consciência humana“ (1). A Modernidade ensinou-nos que mais que as instituições e as ideologiasw é importante a confluência de experiência e interpretação.

Encontramo-nos na infância da evolução a caminho do Homem adulto; o nosso conhecimento é demasiado limitado para poder compreender a realidade dum universo ilimitado. No debate público domina o diálogo do preconceito, o saber da aparência. Esta situação só pode ser reconhecida por pessoas instintivamente empenhadas na descoberta da verdade / realidade. Albert Einstein desabafava;”Que mundo é este em que vivemos… onde é mais fácil quebrar o núcleo de um átomo do que um preconceito.”

O Homem é o sonho do mundo entre outros sonhos do universo, a caminho duma Realidade infinita. Através da Ciência, da Arte e da Religião, procura encontrar-se naquilo que o supera numa tentativa de não ver a sua vida reduzida à de Sísifo. Este foi condenado a viver no Inferno por causa das suas manhas, constituindo a sua pena eterna no trabalho sucessivo de arrastar a mesma pedra ao cimo do monte rolando ela para o sopé, sempre que ele atingia com ela o cume.

Uma nova consciência, dos tempos novos, a irromper pressupõe a superação dos Sísifos da Ciência, da Arte e da Religião para, em conjunto permanecermos no cimo da montanha a presencializar o vale do passado e do futuro. Daí, nas cores do arco-íris unidos iremos todos beber no rio o fluir da vida. Daí compreenderemos o ser do Verão e do Inverno no escuro das nuvens, na força da tempestade, no brilho do Sol que até a noite pontua. Daí nos reconheceremos vegetação feita de selva e deserto, aridez e cascatas, luzes garridas e noites coroadas de estrelas. Daí avistamos e aceitamos os extremos em nós, num jogo de miragens e oásis que nos estimula o apetite da vida. Daí do cimo do monte, juntos seremos uma bandeira que o povo vê e numa dança de procurar e encontrar deixa a saudade humana ao monte subir e aí gozar o longe e o perto, o passado e o futuro na proximidade do agora a desfrutar a amplidão do horizonte. Aí, povo e sentidos todos reunidos na realização do sentido a caminho da meta do bem e do Homem.

As três capacidades humanas fundamentais são pensamento, vontade e sentimento. A ciência acentua o pensar, a arte o querer e a religião o sentir. As três competências fazem parte da mesma alma, como referiam já Paulo, Dionísio Areopagita, Clemente de Alexandria e Agostinho, e correspondem a três caminhos, na descoberta das fontes do ser e da verdade.

O espírito humano manifesta-se através da arte, da ciência e da religião em contínua inter-acção. As três disciplinas correspondem a três vias livres na descoberta da verdade livre. Todas elas se encontram na mesma pessoa, na mesma cultura, na mesma disciplina afirmando-se por vezes uma em detrimento das outras. Por outro lado, mal-entendidos e contradições fomentam, também eles, energias para novas ideias e iniciativas na construção do Homem que não pode estar sem barreiras nem contradições. As barreiras da linguagem e das opiniões levam-nos, de geração em geração, a arrastar a mesma pedra numa luta de afirmação e contra-afirmação de esquerda direita, de teísta e ateu, sem a preocupação livre de verificar o que está por detrás do esforço sisífico que nos impele.

O cientista Einstein dizia “apenas calco as linhas que flúem de Deus”. Se partirmos de Deus como a definição indefinida, da arte e da ciência como definições indefinidas mas sempre a ser definidas, talvez se torne mais fácil uma redefinição sempre em acto de definição de cada indivíduo e de cada cultura e com isto uma cultura de vida integral.

Através da Arte, da Religião e da Ciência pretende-se tactear a realidade, tornar o infinito visível, a verdade palpável. Entre caos e ordem temos a vontade de formar, criar nova ordem. O ser consciente não suporta já deixar-se reduzir a porteiro da própria cultura ou a guarda-livros duma vida enlivrada, alheio ao seu processo e a parâmetros de que faz parte integral. Já não é gratificante ser apenas cão de guarda duma ideologia, duma opinião ou instituição. A verdade da arte, da religião e da ciência impedem que a vida se reduza a memória ou a desejo. A vida e a realidade deixam de estar aprisionadas em museus, igrejas, faculdades, fábricas ou ateliers reduzindo o ser humano a ser cativo: prisioneiro do passado e do futuro, acorrentado à tradição e ao progresso. Não chega ter museus, urge viver com as musas.

Já Heraclito (500 a. C.) reconhecia: “tudo flúi (panta rhei) e nada permanece…é na mudança que as coisas acham repouso”. Por detrás da mudança está o Logos, o Verbo, a informação, a palavra, a acção, o repouso na mudança. A mudança através da aproximação pressupõe a contínua atitude de se gerar no dar à luz, como revela o mistério da gruta de Nazaré. Quental refere esta realidade afirmando que o ”fenómeno antecedente não cria o consequente, é só condição para que ele se produza…A causa do fenómeno está na mesma natureza do ser onde ele se dá…A natureza é o teatro da História, não o seu agente. As leis da História têm a sua última raiz nas leis da consciência” (2), no espírito.

O processo da aventura humana, no sentido da liberdade é um apelo contínuo à consciência. Cada um terá para isso de integrar e realizar em si mesmo as várias musas que batem à porta do seu consciente. Isto se não quisermos limitar-nos a ser cientistas, artistas e teólogos que, na fuga à banalidade factual do quotidiano, amarrados ao tempo e ao espaço, procuram apenas ultrapassar a fronteira da morte alheia sem reconhecerem o horizonte para além da natureza.

O carácter do próprio pensamento e das ciências, arte e religião, encerrados nos próprios caixilhos e fixos nos adequados contornos, não permitem ver mais do que o que encerram, duma Realidade mais abrangente. São apenas recortes do mistério. Assim se mantêm qualidades encarceradas dentro das próprias disciplinas, longe da sua essência. A maioria das pessoas rota em torno da própria órbita no desconhecimento das outras. Assim se adia a vida e a História vivendo-se em segunda mão. A verdade dá lugar à própria opinião. A religião, encerrada em si mesma é folclore, a arte encerrada nela mesma é exibicionismo narcisista, a ciência encerrada nela mesma é ideologia. A realidade não se pode confinar num espartilho, o essencial exige um continente para dele transbordar. Cada época, cada pessoa, cada disciplina desfolha um novo capítulo da vida e da História.

Cada vez se torna mais difícil manter a vista geral das três componentes bem como uma visão do que é específico da arte, da ciência e da religião. Antigamente era mais fácil agir e sentir sob o mesmo tecto da arte, ciência e religião; o seu teto comum e a sua meta são o Bem, o Belo e a Verdade. As suas colunas são a religião, a arte e a ciência.

A arte expressa a contínua mudança do tempo em processo dialogal. Através dela e da religião o ser humano procura estabelecer relações entre o mundo e o que o supera. A arte faz parte da religião. Deus é a realidade toda e nós somos parte dela! Para Platão a poesia deve apresentar Deus como ele é “porque todos os grandes poetas não produzem as suas poesias devido à mera destreza, mas porque estão entusiasmados e obcecados por Deus”. O mistério fala através do brilho da obra de arte. A forma esconde um conteúdo transcendente, não apenas documental. Trata-se, nesta perspectiva, duma vivência do verdadeiro, do bem e do belo no mesmo acto. A arte acorda os sentidos para forças criativas de toda a espiritualidade. Com as criações da arte podemos descobrir o criador em nós.


A ARTE

Com a diferenciação racional as disciplinas foram-se emancipando e diversificando. Hoje encontramo-nos, por vezes, na esquizofrenia da afirmação pela contradição. A arte instrumentalizada, deixa de ter valor, perde o significado em si, para o receber do serviço prestado ou pretendido. Na modernidade a arte deixa de ser verdade.

Picasso (1923) dizia: “o artista tem que saber de que maneira pode convencer outros da veracidade das suas mentiras.” Tratava-se da verdade reduzida ao seu aspecto sensorial. A necessidade de emancipação dos poderes estabelecidos correspondia a uma necessidade de desenvolvimento adequada à consciência do tempo. Também a mentira pode acordar para a verdade.

Sócrates defendia o agir correcto através do conhecimento correcto. Para Kant (1724-1804) as únicas fontes do conhecimento são os sentidos e a razão. Os sentidos (espaço e tempo) são o pressuposto da imaginação sensorial, da aparência (mundo das formas). Aqui a arte quereria apenas a verdade dos sentidos. Mas a percepção impelida pela alma dá-lhe mais profundidade activando a razão criativa.

A experiência de jovens que diminuem a capacidade auditiva devido a músicas demasiado altas, adverte-nos para o perigo de se querer deslumbrar com a forma, com o exterior das coisas, à custa do seu interior. A demasiada ressonância exterior pode impedir a ressonância interior, o acordar da alma, ficando-se apenas pelo nível sentimental, pelo formal. Consumidores da arte são, por vezes, obrigados a aceitar a perversidade como normalidade. Neste caso pode tratar-se duma arte reduzida a espelho de fantasias mórbidas; certamente que também a patologia das emoções não deixa de ter um certo estímulo.

Uma vivência exagerada ao nível dos sentidos (da forma das coisas) pode conduzir à percepção da essência da realidade. A arte dirige-se a vivências que humanizam o Homem. Toda a obra de arte tem um carácter religioso que advém do seu reflexo no interior de cada observador.

A experiência dos sentidos é o ponto de partida para a fantasia criativa. Através do prazer dos sentidos o artista chega à transcendência dos mesmos, para entrar no seu Espírito, e poder levar uma vida não só com gozo mas com felicidade! Na ressonância transformamo-nos na obra de arte. No que diz respeito a um concerto de piano, poder-se-ia afirmar que o corpo se torna no piano a tocar; a sua vibração acorda o espírito para uma esfera já não limitada à forma. Também no deixar-se embrenhar na escrita dum texto pode acontecer como que o orgasmo do contexto. Então, “a mentira” da forma faz reviver a verdade e despertar para novas realidades. A arte envolve-nos na esfera da imaginação e da recordação fazendo vibrar em nós a outra dimensão, o espírito.

Na arte o ser transforma-se de modo a poder realizar as suas intuições. Ela preocupa-se com a realidade. O agente, através da vontade (arte) cria-se e realiza-se a si mesmo como obra de arte como parte da realidade que reconhece e nela flúi. O artista cria algo, realiza as suas intuições reorganizando de novo o mundo das suas percepções. No acto de realizar, o artista experimenta-se como ser livre, como espírito liberto. Entra no mundo do além, no mundo das ideias e torna-as presentes no aquém.

O artista derrama na obra energia concentrada. Na qualidade de ser livre, liberta a realidade e constrói um novo mundo ao serviço dum mundo novo. Pela arte o Homem transcende a sua realidade de produto (criatura) para se tornar produtor. De criatura passa a criador. Assim ilumina a natureza projectando-a para lá dos sentidos com o holofote do espírito. O mundo das ideias é encaminhado no sentido humano, no reconhecimento de que o Homem é a consciência da natureza. Nele ela reconhece-se. Como obreiro da realidade tem uma meta a consciencializar. Não é indiferente fazer ou não fazer ou desaparecer na massa. O problema é deixar de fazer, deixar de caminhar no sentido do bem, da verdade e do belo!

O artista ao fazer o ponto da situação da arte do passado e do presente e das suas sub-culturas terá de ter sempre presente o facto evolucionário (ou melhor, situado) da História. (Não seria adequado falar-se da evolução do pensamento mas sim da vulgarização do pensamento, não do saber mas de saberes). De facto, a verdade é interpretável à luz dos fundamentos éticos e dos novos conhecimentos.

A razão crítica acompanha o artista na sua representação artística. Para se não ser subjugado ao domínio da razão surge o sentimento, a religião como culto integrador. O pensar grego procura responder às questões através da reflexão e da plausibilidade e o pensar moderno através de tentativa e contínua observação.

Ciência
Com a idade moderna de Copérnico e Galileu inicia-se a era científica. Nicolau Copérnico mudou a imagem do mundo ao colocar a terra a andar à volta do Sol, passando este a ser um ponto entre outros do universo. Isaac Newton (1643-1727) descobre a lei da gravitação tornando-se o pai da física mecanicista.

A leitura do universo começa assim a contrapor-se à leitura bíblica. Deixa de haver a verdade para haver doutrinas, opiniões. A ciência divorcia o Homem da natureza que quer máquina e enceta a via dialéctica reservando para si a Terra e para a religião o Céu. A realidade passa a ser apreendida no objectivo e factual perdendo o seu carácter processual e subjectivo.

O cientista reconhece algo na terra e preocupa-se com o geral, com o possível; para ele a ciência é a possibilidade. O pensamento é um caminho para a liberdade. Ele investiga o mundo dos objectos, a crusta da realidade. Do mirante do pensamento consegue observar o acontecer do mundo. O pensamento começa por reduzir tudo a objecto para assim o poder observar como realidade individualizada. O pensar grego reduzia a realidade às ideias, o judaico cristão ao agir.

Kant acreditava na capacidade da verdade se afirmar e resumiu o agir responsável ao imperativo categórico: “Age de maneira que a Máxima da tua vontade possa valer em cada momento como princípio duma legislação geral”. Para ele, moral terrena e religião correspondem-se, cobrem-se porque a lei moral no agir é orientada pela razão e corresponde aos mandamentos. A crença em Deus não se pode reduzir a uma declaração de confissão; o seu reconhecimento dá-se através do cumprimento da sua obrigação. “Tem coragem de agir segundo a tua razão”, exorta Kant. Esta exigência tornou-se a essência do iluminismo e fomenta o espírito crítico em todas as disciplinas, incluindo a teológica. O seu compatrício Bento XVI corrobora: “Não agir razoavelmente é contrário à natureza de Deus”. Adverte ao mesmo tempo para o relativismo esvaziante.

O pensamento tropeça nele mesmo ao reduzir o mundo a discurso e ao obstinar-se na objectividade. Neste percurso a ciência desvincula-se do Homem e da natureza.

A física quântica demonstrou que a realidade não se deixa definir apenas pela objectividade, dado, esta ser essencialmente subjectiva. A ciência precisa sempre dum acto posterior em que o sujeito pensante pode ver para lá do objecto individual restituindo-lhe o seu carácter de sujeito, o que implica a superação do dualismo. No fundo também o objectivismo científico não passa duma soma de subjectividades cristalizadas. Rudolf Steiner, em “Ciência da Liberdade”, designa o caminho da Ciência para a verdade como “monismo” onde o aquém e o além se transformam nas duas partes da mesma realidade ao alcance de quem procura. A tecnologia é a arte da ciência. O conhecimento provém da união da ideia com a percepção.

As teorias são, também elas, modelos (hipóteses e métodos) de explicação duma realidade inexplicável. A verdade científica permanece verdadeira até à nova descoberta. Novas teorias científicas, parecem contrariar aspectos da teoria de Copérnico colocando de novo a Terra com o seu Sistema Solar num lugar central do universo (cfr. Teoria em torno do cosmólogo Clifton). Também a contínua expansão do universo desde o Bing Bang, há cerca de 13,7 mil milhões de anos, provocada pela “energia escura” ou força anti-gravidade (70% do conteúdo da energia do universo) é questionada. Ninguém consegue determinar a natureza da energia escura sendo a sua existência controversa, no próprio mundo científico. Também aqui as certezas caem como as folhas do plátano no Outono. Hoje como ontem torna-se óbvia a atitude sábia e humilde de Sócrates de que “sei que nada sei”. No nevoeiro cerrado da floresta virgem da realidade vai-se fazendo caminho, passo a passo, na procura da realidade / verdade. Para isso não parecem ser suficientes as catanas dos sentidos e do pensamento. O pensamento causal da ciência e a visão mecanicista e determinista de Newton revelam-se como inválidos para grande parte da realidade física, como confirmou a mecânica quântica. Uma ciência divorciada, sem meta continuará a vaguear no labirinto que envolve o Homem desviando-o dele mesmo. Não chega a lógica nem as categorias causais para descrever a realidade. “A lógica leva-nos de A para B. A imaginação leva-nos a todo o lado”(Albert Einstein).

O caminho do conhecimento do Homem ultrapassa a sua abordagem científica. A ciência procura conhecer a unidade da realidade. Através da intuição podemos consciencializar-nos da sua componente material e espiritual. „A ciência levanta os olhos para a ideia através da sensualidade (sentidos), a arte avista a ideia na sensualidade (sentidos) ” (3). A cultura dá um passo em frente procurando superar a sensualidade através do espírito. Na religião prevalece o acto integrador da fé. O crente faz parte integrante do acto (litúrgico) não se distanciando dele como observador, ao contrário do que acontece na ciência mecanicista e determinista.

Religião

Antero de Quental, homem íntegro, que não parou numa posição ou opinião, confessa o perigo em que incorreu, afirmando: “Eu acreditei em muitos dogmas da moderna superstição do Progresso” (4).

O caminho da religião (re-ligare, religo e re-legere, recolho) é um processo de re-união ao protótipo divino (síntese Jesus Cristo), presente no mais íntimo de cada um (a natureza de Cristo em nós). Esta é a religião interior do Homem adulto, do super-homem de Nietzsche. Aí, no âmago do ser, se realiza o Homem a acontecer. Jesus é o primeiro super-homem, o primeiro Homem realizado. A máxima “Ama e faz o que quiseres” de Agostinho, é o resumo da vida cristã, a vida do Homem superior.

O Homem realiza-se a caminho da liberdade, integrando o pensamento e a acção no sentir. No momento religioso o mundo dos sentidos encontra-se em harmonia com o mundo espiritual numa relação de encontro de Homem e Mundo, de Homem e mundo em/com Deus. A criatura participa do criador (o cristianismo não é um monoteísmo puro, nele integra a natureza criada); aí a pessoa alcança a consciência mais alta da verdade. Realiza-se misticamente a união do eu com o mundo, tudo isto em processo. Neste estado de consciência dá-se a percepção da alma das coisas. Em termos cristãos trata-se da experiência da transubstanciação. O processo de desenvolvimento do eu e da consciência poderia ser comparado à incarnação e ressurreição. Primeiro dá-se a descida, a incarnação do Espírito (Cristo) em Jesus para depois se dar a subida de Jesus (matéria) em Cristo, o eu espiritual. O que em termos cristãos poderia ser referido como a experiência da realidade da Trindade. Não se está no mundo, é-se mundo com o mundo a gerar o mundo, a Realidade. O ser humano deixa de ser parteira para se tornar em grávida. A gravidez da vida resulta da gestação do espírito na matéria que se encontra sempre em processo de dar à luz. A religião é a alma da cultura e ao mesmo tempo o sémen da arte e da ciência. O ser religioso experimenta-se como ser limitado e incompleto, a acontecer na relação com o outro. Religião é ao mesmo tempo lugar da experiência, da ideia, do rito e da ortopraxia.

Ora et labora como diz a regra beneditina. Aqui não há contraposição mas sobreposição e osmose das diferentes componentes ou perspectivas do ser humano. A arte que antigamente tinha a sua casa na igreja viu-se obrigada a sai para a rua devido à estreiteza das suas janelas. É necessário que ela reentre não como escrava mas como senhora!

O Cristianismo olha para o mundo com o olhar interior da oração e da acção partindo dum ser humano ao mesmo tempo criatura e criador. A religião e as outras disciplinas têm-se fixado demasiado nas insuficiências humanas e nos limites descurando o carácter complementar de todos os sectores da vida e da realidade. Deixam-se assim deslumbrar no dualismo duma dialéctica que vive da contradição e da auto-afirmação à custa do outro. A dialéctica é superada pela poética e pela religião (se bem entendidas!). Religião é processo, caminho de / para Deus. A tua conduta é que determina a verdade da tua religião, a tua veracidade.

Ciência, arte e religião são diferentes formas de procura e de realização da mesma realidade que é o Homem, o mundo e o que o transcende; têm de comum o mundo espiritual e uma meta conjunta que é o Bem, a Verdade e o Belo. A mística é a fonte de encontro onde todos vão beber numa missão de descoberta e revelação. Trata-se de redescobrir e reinterpretar o mundo até agora revelado e de gerar novos mundos.

Para isso é necessário entrar na relação dinâmica entre as três no sentido de criar uma nova forma de estar para se dar à luz uma nova realidade. A ciência e a arte pressupõem a religião, como podemos interpretar no aforismo de Goethe:”quem possui ciência e arte, tem também religião; quem não tem as duas, tem religião”! A religião é o substrato.

A música clássica é um exemplo acabado da sintonia da ordem divina do mundo, por isso se tornou insuperável. Teilhard de Chardin fala-nos da “convergência” do ser. A experiência religiosa testemunha uma evolução da experiência espiritual que se processa na abertura do espírito. Constata-se ao longo da história humana um evoluir de consciências. Ao estádio arcaico, pré-paradisíaco seguiu-se o estádio mágico e mítico para passar ao estádio mental-racional em que nos encontramos. No horizonte já se adivinha o próximo estádio, o estádio integral. Neste estádio passa-se da afirmação pela contradição, duma “mentalidade do ou…ou” para a “mentalidade do não só…nas também”. A visão a-perspectiva integra as visões perspectivistas numa panorâmica global integral. Neste estádio da consciência integral já não se reconhecerão as respostas do estádio mental-racional como respostas definitivas. “O mundo deu o salto das formas da consciência mágica e mítica por volta do ano 500 a.C., o que entre nós aconteceu de forma mais vincada do que na Ásia; agora a humanidade prepara-se de novo para um salto; este leva-nos da consciência mental arracional para a consciência integral arracional”(6).

N estádio pré-parasidíaco bíblico a alma ainda se encontra embrulhada na natureza, em estado de sonolência. A alma dorme sem descobrir o outro, sem a consciência da diferença de homem e mulher, num estádio androgínico. Na fase de passagem mágica-mítica descobre-se como sexuado, nota a diferença (altura em que Eva, mais desenvolvida abre os olhos de Adão para a realização, a autoformação). A alma adormecida procura fora o que nela dorme. A consciência mítica leva o Homem a separar-se da união mágica. Começa a olhar para dentro de si mesmo, reflectindo então nos mitos as paisagens da alma. É o princípio da reflexão, da percepção polar.

Milhares de anos mais tarde, o Mestre de Nazaré, vivendo embora em ambiente de consciência mítica, supera o pensar mítico e vence a esfera mental-racional presente nos fariseus numa interpretação bíblica demasiado enredada em abstracções. A transparência do mundo torna-se visível nele; nele irrompe o aquém e o além, o “não só…mas também”, a divindade e a matéria reconciliada no Homem. No acontecer de J. Cristo realiza-se a estrutura da Consciência integral. Os discípulos vivem a transfiguração do mundo através da força espiritual. Hoje, apesar de muitos se encontrarem ainda sob as auroras mágica, mítica, mental racional, mais que nunca, através dos avanços da ciência e da reflexão, se encontram mais pessoas preparadas para compreender a estrutura integral da consciência a-perspectiva a querer irromper.

Esta é a fase em que a Ciência, a Religião e a Arte se irmanam. Nesta nova fase do desenvolvimento a religião ou se torna mística ou perde grande parte do seu sentido, como afirmava Karl Rhaner.

Para Teilhard de Chardin evolução é o subir da consciência do mais profundo da matéria no sentido convergente do Ponto Ómega (5). A meta da História cósmica e humana é o Ponto Ómega. O desenvolvimento da consciência na matéria encontra-se documentado em J. Cristo no qual a matéria floresce no espírito, tal como a vela ardente que em si reúne matéria e “espírito”.

A teologia da Trindade e a Física quântica reconhecem a Realidade, por diferentes vias, como relação de complementaridade e interacção. No princípio era o Verbo, a informação!…

Também a biologia reconhece na natureza o princípio da colaboração em contraposição duma biologia em serviço da ideologia, unilateralmente centrada no princípio da selecção natural.

É óbvio o surgir duma nova era em que a dialéctica se revela apenas como uma técnica de abordagem e não como a realidade adulterada numa perspectiva meramente linear ou cíclica (ocidental/oriental). A dialéctica é superada pela poética, pela religião e pela física quântica. No encontro da Ciência da arte e da Religião processa-se ao mesmo tempo o encontro do Ocidente com o Oriente; os dois pólos da realidade reconciliam-se numa perspectiva integral.

A Realidade é a-perspectiva sujeita a abordagens de perspectiva que, como tais, só se tornam verdadeiras numa relação de complementaridade. A apreensão da verdade é possível, muito embora na consciência da roupagem da própria perspectiva.

Não se trata de não progredir ou de não regredir mas de evitar o pragmatismo oportunista e de entrar num processo de mutação na colaboração de ciência, arte e religião, em respeito mútuo.
Auto-afirmação através da afirmação e confirmação do outro.

A Realidade é como uma casa feita só de portas e janelas. Na existência sabida e sentida, por mais portas que se abram, mais portas ficam por abrir. A religião, a Ciência e a Arte não poderão continuar a reduzir a sua missão a porteiros da realidade, reconhecendo-se parte dela.

No fazer, realizar e crer estamos todos a dar resposta à questão: quem sou eu? Eu sou no tu do nós!

Ulisses é o protótipo do Homem ocidental, que é de natureza transpessoal. Ele no seu plano, ao contrário da ciência e da tecnologia, tinha uma meta existencial na vida que era atingir a “sua terra”, o Bem, a Verdade e o Belo. Porque tinha sempre uma meta maior a atingir, não se perdeu nem reteve numa circunstância da vida ou num lugar. Ítaca e Penélope davam-lhe força para continuar o seu caminho. O caminho enriquece-o e a meta torna-o sábio. Ao chegar à terra tinha conseguido reunir nele todo o saber da vida. Tinha chegado ao profundo dele mesmo!

© António da Cunha Duarte Justo
antoniocunhajusto@googlemail.com
Pegadas do Tempo
http://antonio-justo.blogspot.com/

(1) Antero de Quental, Pensamento Português, p. 146, Editorial Verbo
(2) Antero de Quental, Pensamento Português, p. 191 Editorial Verbo
(3) Rudolf Steiner in Grundlinien einer erkenntnistheorie der Goethschen Weltanschaung, mit besondrer Rücksicht auf Schiler.GA Bibl.-Nr.2 Dornach, 7.Aufl.1979
(4) Antero de Quental, Pensamento Português, p. 102, Editorial Verbo
(5) Pierre Teilhard de Chardin, O Fenómeno Humano, Livraria Tavares Martins, Porto 1965
(6) Jean Gebser, Hasienfiebel, p.157, Bern 1962

A REPÚBLICA VIVE EM ESTADO DE DIVÓRCIO

AINDA A RESPEITO DE SARAMAGO E DOS SARAMAGOS
António Justo
Com a fuga de D. João VI para o Brasil acentua-se a desnacionalização das nossas classes dirigentes. Os invasores napoleónicos, violadores do povo e da nação, até são saudados por uma delegação da maçonaria portuguesa. Com as invasões napoleónicas e as lutas civis, estabiliza-se o desassossego em Portugal. Se antes se vivia na “apagada e vil tristeza”, (1) passa-se a viver na instabilidade dum estado ocupado por um partidarismo de carácter mercenário e envergonhado do povo e da nação.

Ofuscados, só vêem o progresso e as luzes no estrangeiro que copiam e importam sem consideração pelo génio português. O povo continua fiel à pátria e no respeito pelos que se aproveitam dela.

Um certo espírito traiçoeiro das nossas elites é já crónico! Com a revolução democrática de 1383 contra a usurpação estrangeira e seus mercenários portugueses, o povo português mostrou-se democrata e patriota, virtudes que faltavam já então a uma boa parte da aristocracia. A de hoje, não baseada já nas alianças de sangue, é pior porque, mais generalizada e alargada nas organizações ideológicas com as correspondentes redes das famílias partidárias, tem uma motivação já não cultural mas apenas económica. Um País de vocação universal tornou-se cada vez mais num Estado opinioso, de categorias. É-se uma nação sem povo e uma nação sem Estado: um Estado ocupado, uma nação a reboque!

Às dinastias das famílias reais seguem-se a dinastias partidárias

A União Europeia possibilita o monolitismo partidário à semelhança das famílias nobres durante as monarquias. Estas desempenharam grande papel no apuramento e alargamento da cultura europeia. Enquanto antes dominava um certo elitismo cultural fomentado pelo clero e pela nobreza hoje vulgariza-se o espírito proletário transportado pelos novos-ricos que substituíram a alta burguesia.

Os soberanos legitimavam o seu poder através do sangue; hoje os governantes legitimam o seu poder na ideologia confirmada não por famílias de sangue mas pelas famílias ideológicas. Se antes era o sangue e da terra, hoje é a ideologia e o Estado. Se antes o povo era explorado pelas famílias reais, hoje é-o pelas famílias partidárias. No palco da nação e no tráfico das influências, dançam sempre os mesmos “maiores”, os dançarinos do poder, independentemente dela ser monarquia ou república. Uma pequena percentagem de 2% da nação é que decide o que é justo e o que se deve crer e fazer.

Portugal ainda não se tinha restabelecido do jugo espanhol e do susto do tratado de Berlim, para passar a ser confrontado com a cumplicidade de portugueses com o jugo francês e as arbitrariedades inglesas, a que se acomodou, sublimando-os com a abolição da monarquia e a importação da República. Às dinastias das famílias reais seguem-se a dinastias das famílias partidárias.

Também o golpe de estado de 1974, que floriu na democracia de Abril, trouxe um grande corte à alma do país. Os novos dançarinos do poder entregaram, irresponsavelmente, as zonas de influência portuguesa ultramarinas aos soviéticos. Desta vez a ideologia marxista de alguns portugueses é prazenteira e generosa, (como sempre) para com os irmãos de atitude política: tudo à custa do país e de seus interesses e também em desproveito da situação nas “regiões ultramarinas”, antigas colónias. A vontade de liberdade nacional que esteve na origem de Portugal e a resistência contra o predomínio espanhol deu lugar ao oportunismo de alguns internacionalistas que desconhecem ou desprezam a terra. Ao espírito navegador, e consequente prestígio nacional, sucede o espírito lacaio de se quererem mostrar bons dentro das suas famílias europeias implementando leis e costumes a nível nacional sem olhar a custos nacionais. Assim há um divórcio entre a índole portuguesa e a vida que lhe é imposta. Gil Vicente já outrora conhecia os vícios das nossas elites admoestando-as: “Não queirais ser genoveses, senão muito portugueses”.

A alma portuguesa, antes vocacionada a realizar a ideia da globalização inerente ao catolicismo, vê-se fustigada pelos ventos ciclónicos provenientes da França e da Rússia, não encontrando mais apoio em si própria. Deixou de ser a incubadora e a expressão da ideia europeia, que realizou nos Descobrimentos, para passar a andar à deriva das suas tempestades e ideologias aproveitadas por alguns portugueses. Se o primeiro papel correspondia ao espírito português, o segundo já não. (2)

Se antes se era obrigado a prestar vassalagem depois passou a admirar-se a vilanagem. Esta experiência encontra-se bem documentada no saber popular: “Se queres conhecer o vilão, mete-lhe a vara na mão”. Um povo sonhador virado para a terra não confia nos sonhos da vila nem nos correspondentes representantes. Por isso murmura baixinho: “Eles comem tudo e não deixam nada”. Estes bandeirantes internos persistem em construir a cidade contra o campo. Da província só lhes interessam as auto-estradas para dela desfrutarem a paisagem e depois regressarem à civilização, com um vago sentimento português resumido a um misto de cheiro a caldo verde, bacalhau, rojões e salpicões. Portugal, atrás das modas, continua a viver do passeio entre “a cidade e as serras”, parodiando o progresso.

O Desconsolo do Desassossego num Povo sossegado

A implantação da República foi sentida em Portugal mais como um divórcio de si mesmo, mais como uma imposição de alguns estrangeirados do que algo nascido do próprio húmus. Se de Castela “nem bons ventos nem bons casamentos”, agora, de fora, só ventos em favor dos cata-ventos.

Para o português de sucesso “não há pai” nem sequer mãe. Esperto, permanece sempre criança na consciência de que “quem não berra não mama”; por isso se encosta já não às saias da mãe nem do padre, mas a qualquer saia que lhes possibilite agarrar-se para olhar e subir! Por isso procura o seio da prostituta, a chucha do Estado, da ideologia e da Europa. Consolo encontra-o na companhia dos leitões irmãos e reconhecimento basta-lhe o dos compadres ‘da sua terrinha’. Todos vivem, longe da pátria, mas vivem bem no odor da saudade, dum patriotismo puro de antenas viradas para o distante. (3)

José Saramago é bem o símbolo deste Portugal das elites estrangeiradas. Saramago tal como “Caim” são aquela parte de Portugal que continua a apostar na afirmação do progresso pela contradição, na luta inglória do progresso contra a tradição. O génio português é porém Adamastor e Velho do Restelo na tarefa de ultrapassar o Cabo Tormentório. Na resposta do Adamastor à pergunta do Gama “quem és tu?” reencontrar-nos-emos todos como portugueses genuínos e o medo das Tormentas e dos tormentosos se dissolverá para dar lugar à vista de Tétis presente na alma do povo.

É de superar aquela atitude típica portuguesa documentada na reacção de Saramago, aquando da publicação do Livro polémico do Evangelho de Jesus Cristo, retirando-se para Espanha. Quando não se está bem emigra-se para o interior ou para o exterior, facilitando assim o prolongar do viver num estado de graça e de irresponsabilidade aos mandarins. Safa-se o indivíduo na afirmação contra o país e contra o cidadão!

Cada um arranja-se como pode! Cada um vive para cada qual no “paciência”, no “que fazer!”, no “tenho é de cuidar da minha vidinha!”, no “não levantar ondas”, no “eles lá sabem!” e “a vida é assim… safe-se quem puder!” Um “povo de brandos costumes” prolonga e tolera assim o intolerável! A tolerância sem carácter, sem qualidades, torna-se indiferença. O medo torna-nos todos iguais, sem qualidades próprias; torna-nos apenas bons para servir outros!
Assim a nação continua a viver dividida nas coutadas dos mandarins e seus afins e nos baldios sombrios do povo. Um povo à balda em nome da nação!

A jactância, a inveja e a pequena vingançazita são vícios crónicos que encurtam o horizonte cultural português. Saramago veio a Portugal anunciar o livro “Caim” com frases polémicas, provocando grande parte da sociedade portuguesa que no desconhecimento do livro só podia reagir às suas provocações. A parte mais séria, a apresentação do livro, reservou-a Saramago para os espanhóis, em Madrid.

Aqui o Nobel confidencia:” Eu não escrevo para agradar ou desagradar. Eu escrevo para lançar o desassossego”. A impressão que se tem é que o José, em relação a Portugal, pretendia não o desassossego mas a provocação. Nele fala o indivíduo, o José e não o cidadão!

Fernando Pessoa no seu “Livro do desassossego”, uma espécie de diário da ficção, é um português que assume Portugal e não apenas uma sua parte porque muito embora querendo espalhar o desassossego o fez não dividindo nem apostando no ressentimento de tradição republicana jacobina (4). Fernando pessoa revela conhecer os recônditos da alma portuguesa e respeitá-la ao dizer: “O povo português é, essencialmente, cosmopolita. Nunca um verdadeiro português foi português: foi sempre tudo”. “O bom português é várias pessoas… Nunca me sinto tão portuguesmente eu como quando me sinto diferente de mim”… O problema das nossas classes dirigentes está em só serem apenas estrangeiras desprezando a parte portuguesa, que por tradição de classe esqueceram. Se até meados do século dezanove, na qualidade de “emigrantes” ainda eram mediadores da cultura europeia, no século XX até isso perderam, contentando-se apenas com as remessas económicas e com a glória de representar “lá fora”.

Caim de Saramago não se submete, ele põe Deus em questão, tal como já tinha feito Miguel Torga, no seu livro Bichos na pessoa de Vicente (o corvo), que desassossegado com o sossego que reinava na turba da Arca de Noé, resolve abandoná-la em sinal de protesto perante um criador injusto que castiga os bichos por causa das maldades humanas. Vicente desafia a omnipotência divina e verifica que Deus cede à sua vontade de ser livre, aceita a sua revolta. Aqui Torga revela o humanismo cristão do génio português, mediador dum Deus amor, por cima de tudo e de todos mas com tudo e com todos; dá a impressão de perceber a morte de Deus em Jesus que ressurge como Homem em Cristo enquanto que Saramago se ocupa com um deus pagão ou à la Nietzsche.

Tal como Caim que vagueia pelo país, Saramago aproveita para viajar na Bíblia. Ele tem razão quando provoca o povo a não aceitar sem mais a história secular e religiosa. Esta não pode ser aceite como se fosse pão fabricado directamente nos fornos de Deus. Os nossos deuzitos, cá de casa fazem o que querem porque desconhecem os Noés e os Vicentes. A Bíblia é um espaço espiritual com mansões para todos. Interessante seria que Portugal se tornasse num espaço geográfico e espiritual com lugar para todos e que todos descobrissem a sua natureza fundamental e se encontrassem na complementaridade. A verdade do outro pode ser motivo de desassossego mas não da sua negação. Necessita-se reconhecer o adversário, o contrário para se poder entrar num processo de integração. Torna-se urgente uma cultura em que a própria argumentação contra se possa expressar também numa argumentação a favor pelo mesmo: uma cultura do “não só… mas também”! Não só mandarins mas também povo!

Portugal e os portugueses adiam o futuro de governo em governo, de situação em situação, na fuga à mudança necessária de cada um. Séneca dizia que não ousamos, não por ser difícil, mas, por não ousarmos é difícil! Não chega sermos uma sociedade à Robinson Crusoe. A república trouxe o fim das ilusões. Vivemos em contínua luta cultural reduzida ao âmbito da ideologia, numa sociedade dividida que ainda não se encontrou. A nação dança ao ritmo de músicas ideológicas dos que vivem encostados ao Estado. Não chega ser república, é preciso tornarmo-nos estado e nação também. O problema de Portugal é o dos seus mandarins! Camões cantava o povo, “o peito ilustre lusitano” enquanto que a nossa classe dirigente canta “as modas e os ventos ideológicos num estilo capataz individualista cada vez mais distante da alma poética e sensível do povo. Este continua a dizer pela boca de Gil Vicente no Auto da Lusitânia: “Eu hei nome ninguém e busco a consciência…” e no auto das barcas admoestava de novo as elites: “Não se embarca tirania, neste batel divinal”. Gil Vicente era um “Homem Bom” do povo, um patriota.

Resumindo e a propósito da discussão antecipada ao livro “Caim”, a sociedade portuguesa é incapaz de entrar numa discussão séria sobre o seu ser, sobre o seu marxismo e capitalismo, sobre o seu ser laico e religioso. Prefere uma guerrilha preconceituosa de trincheiras, em posições de citações em que se servem os usufrutuários do sistema. Preconceitos vivem de preconceitos. Destes se tem alimentado os heróis da política e seus excluídos. E os intelectuais independentes limitam-se a assistir ao circo de fora. Vai sendo tempo de os tradicionais inimigos do povo e os exploradores da nação se reunirem numa mesa redonda. Se os campos rivais se tomarem a sério, ao duelo seguir-se-á o diálogo para depois formarem um dueto! Não se trata não só de se saber quem se é mas também de quem se vai ser. O exemplo dum país pequeno mas com presença mundial é a Suiça com a sua democracia directa. O regime português precisaria duma correcção, duma democracia que corresponda mais ao espírito português, mais ligada à terra e ao povo, com pessoas de carácter menos partidário e mais “Homem bom”, em atitude de fidelidade à nossa tradição democrática já presente nas suas origens. Se queremos voltar a ser um povo heróico teremos de redescobrir os ideais do passado grande e seguir o exemplo do povo judeu!

O Povo português, sem fidelidade a si mesmo, sem um ideário cultural nacional próprio, vai vivendo entre os complexos de inferioridade e de superioridade, entre a inocência e a cumplicidade num estado de consciência mortificada.

Continua embrulhado no discurso fácil e na propaganda, levado pelos dançarinos do poder ao ritmo duma dança leviana, sem consciência das diferenças expostas, sem vontade própria de existir. O Povo continua a viver o destino dos outros, na mágoa de não ser nem estar para apenas parecer: Português para Inglês ver! A mágoa faz parte daquela característica bem portuguesa que é a saudade! A mágoa de nos seus representantes não ser o que é, e que provou ser nos princípios da nacionalidade.
© António da Cunha Duarte Justo
Pegadas do Tempo
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(1) Passo a citar, embora com reservas, o que dizia Charles Dumouriez no seu livro “O Reino de Portugal em 1766” no primeiro capítulo da obra: “ Os costumes das províncias do Norte de Portugal assemelham-se positivamente aos dos escoceses. São belos homens, francos, sinceros, corajosos, cheios de preconceitos, de ódio nacional e de amor patriótico. Eles exercem a hospitalidade: Nas províncias de Entre-Minho-e-Douro e Trás-os-Montes, não existem albergues. No meio do país, ao contrário, e particularmente em Lisboa, os habitantes são ladrões, avarentos, traiçoeiros, brutais, orgulhosos, mal-humorados e também maus de corpo como de espírito; encontra-se contudo algumas excepções, e sobretudo entre a nobreza, que é mais culta do que a nobreza espanhola, mais afável e comunicativa, o que devem ao grande convívio com estrangeiros.” …”Em política não se trabalha nunca o suficiente com o conhecimento do carácter dos povos, olha-se apenas os reis e os seus interesses e, frequentemente, perdem-se as negociações mais essenciais por não ter sabido reaproximar as oposições que se encontra entre estes grandes interesses e o carácter das nações coma as quais se trata”…

(2) Um povo púdico sente-se então defraudado por algo estranho, que também traz no coração, e por ideologias estrangeiras que é sempre obrigado a seguir sem ter interiorizado. O mesmo povo com os mesmos sintomas: dum lado, os empertigados do poder, e do outro, os saudosos das grandezas. Dum lado os sempre novos-ricos, do outro a sempre arraia-miúda. Àqueles falta-lhes o cultivo e a transmissão dum substrato comum, o cultivo de Camões, Gil Vicente, António Vieira, Alexandre Herculano, Antero de Quental, Fernando Pessoa e outros. A arraia-miúda é o traço contínuo, a verdadeira característica portuguesa, que apesar dos seus “estrangeirados” continua a ser povo fiel à sua índole cristã, nórdica, asiática, universal. Este povo de fisionomia paciente, atenciosa, boa e dócil apesar do contínuo mau exemplo das elites dirigentes mantém o seu carácter. Este encontra-se obsidiado pelo espírito internacionalista leviano dos seus dirigentes e por uma escola mais tendente a formar proletários do que cidadãos. A classe dirigente, alheia ao génio inter-cultural e universal português, arma-se, perante o povo, em educadora de tolerância, internacionalismo e democracia. Cultiva uma democracia de trazer por casa no respeito do seu gueto; como empossados não suportam a democratização cultural. Nos reservados sociais do Estado e da Administração querem-se apelidados de senhores doutores, senhores engenheiros, senhores professores e lá fora, na democracia de campo para a plebe reservam o tratamento proletário de senhor António, Sr. José, Sr. Manuel. O trabalhador que dobre a língua, quer-se subserviente e no respeito de sentido único, de baixo para cima. De cima para baixo, resta o despudor transformado em sorriso benigno à cata dum sorriso de desobriga. O povo, bem-educado, olha em contra plangé com um sorriso amarelo do fadário domingueiro.

(3) Portugal não tem casa sem emigrante. Quem procura trabalho vai para o estrangeiro e os saramagos vivem do estrangeiro ou do estranho povo…

(4) Ou não será ainda a voz da má consciência dos anafados que arrecadaram para eles os bens da igreja e os passais, que antes serviam indirectamente o povo? A nação continua a viver de tabus e de espertezas cretinas.

Ao observar a cena cultural alemã, na qual os filhos dos pastores e as igrejas ocuparam grande relevância cultural observa-se uma certa luta cultural entre a tradição católica e a tradição protestante mas não o ressentimento. Em Portugal onde filhos de padres e frequentadores de seminários alcançaram posições relevantes na política e na cultura é mais notório o ressentimento e a inveja. Não se trata aqui de defender a tradição mas de nos questionarmos a razão porque em Portugal, para além dum certo patriotismo superficial não há a consciência viva duma cultura nacional, uma cultura do cidadão. O encosto ao republicanismo primário francês e correspondente imitação cultural têm acontecido em desaproveito da tradição anglo-saxónica e deste modo se tem reduzindo a universalidade do pensar português.

Energia Solar – O Investimento do Futuro


Investimento em painéis fotovoltaicos preferível a rendas de casa
António Justo
A técnica solar fotovoltaica está já muito desenvolvida podendo adquirir-se grandes rendimentos através da sua exploração. Em Portugal e em países de sol tornar-se-ia mais rendoso fazer investimento na cobertura das casas com painéis fotovoltaicos do que em construir habitações para alugar.

Na Alemanha, que é um país menos soalheiro cada vez se expandem mais os painéis solares nas casas particulares. Na minha cidade de Kassel e redondezas, onde a tecnologia expande e as fábricas de painéis solares abundam, já há a iniciativa de alugarem os telhados das casas particulares para poderem dar resposta à procura de espaços para investidores (HNA 13.1.2010). Kassel é o centro foco da tecnologia e da produção fotovoltaico.

Há particulares que preferem ter painéis solares do que inquilinos, porque aqueles não lhe dão preocupações além de constituir um investimento não menos rentável que o das rendas de casa. A produção de energia nos telhados e a possibilidade de a usar e vender o resto possibilita uma política de democratização dos investimentos.

Na Alemanha, embora as companhias abastecedoras de energia, actualmente só paguem 39,14 Cêntimos por quilowatt hora aos proprietários de casas com energia fotovoltaica, o investimento é muito rentável atendendo a que o custo dos módulos solares desceram 30%.

Dado haver uma garantia de compra da energia por um mínimo de 20 anos, os bancos financiam em 100% as instalações fotovoltaicas. O “crédito solar” em média de 25.000 – 30.000 euros é garantido num prazo de 10 até15 anos com juros efectivos de 4,5%.

Em dez anos a instalação já se pagou a si mesma. O estado alemão subvenciona particulares que consumam também para eles energia fotovoltaica com uma subvenção de 22,76 Cêntimos por quilowatt hora. Deste modo, os proprietários de casas que pagam 17 Cêntimos por quilowatt hora aos fornecedores de energia passam a ganhar com o investimento. O povo ganha e o Estado investe assim na defesa do ambiente.

O governo português favoreceu de início apenas as grandes empresas impedindo assim o investimento a emigrantes contra uma política de energia e financeira favorecedora dos proprietários de casa.

Com a diminuição da natalidade cada vez haverá menos procura de casas perdendo estas, o seu valor comercial.

Vai sendo tempo dos países com muito sol acordarem e fomentarem a energia eólica e a energia solar (fotovoltaica), investindo assim, ao mesmo tempo, no futuro, na defesa do clima e na democratização da economia.
António da Cunha Duarte Justo
antoniocunhajusto@googlemail.com

NÃO CHEGA SER REPÚBLICA URGE SER NAÇÃO E POVO TAMBÉM


EM SARAMAGO FALA O INDIVÍDUO NÃO O CIDADÃO
António Justo
José Saramago, em torno do seu Livro Caim, assumiu a boa tradição tauromáquica, atirando com farpas para o couro dum povo que se deixa levar pelas vaias duma proeminência portuguesa de olho. As elites não estão dispostas ao diálogo e o povo também não. Este faz ouvidos moucos e aquelas fazem ouvidos de mercador! Elites e povo, na sua relação, ou se desconhecem ou não se tomam a sério. Os intelectuais, em grande parte, contentam-se com a ressonância do seu eco, não concorrendo assim para o estabelecimento duma cultura nacional crítica e viva porque apostam demasiado na graça ideológica política ou no seu bem-estar privado. Não tomam a sério a realidade dum povo e duma nação doente a mudar e por isso não a podem transformar, ao contrário do que acontece noutras culturas onde personalidades dum ou doutro acampamento são símbolos e trilho da consciência nacional.

O Estado vive da Nação e não para a Nação

A nação dos “grandes” é pequena e eles conhecem-se todos uns aos outros ou são aparentados. A nação torna-se assim demasiado pequena para eles, procurando consequentemente a sua compensação e identificação fora dela. Vivem com um pé dentro e outro fora. Isto provoca uma maneira de estar muito específica portuguesa; mesmo em oposição ou na diferença, mais que a dialéctica, domina uma atitude insuflada, uma relação de inveja entre as partes. Isto é socialmente compreensivo atendendo ao carácter de subserviência (Abel) e por outro de revoltado (Caim) da nossa cultura.

Em Portugal, ao espírito missionário religioso antigo sucedeu-se, a partir do século XIX, o espírito político jacobino-jacobeu. Se antigamente o povo vivia sob a vassalagem da terra hoje vive sob a vassalagem da ideologia. A nação não tem forças económicas e culturais independentes do Estado que possibilitem uma cultura que não seja a do encosto ao Estado e aos (indivíduos não cidadãos) que dele se apoderam. Os arrivistas mais que à custa do seu próprio trabalho e da própria inteligência procuram viver com esperteza a expensas dos coutos ou do povo, improdutivos, sem se sentirem parte do todo. A esperteza é sempre um parasita da inteligência pelo que gera indivíduos e não cidadãos! Neste estado a nação não tem húmus para sustentar árvores fortes que não vivam do encosto ou do cálculo que a ele leva. O mesmo se diga dos partidos que desde o liberalismo se sucedem nos governos. Portugal continua a ser uma nação pobre condenada a ser apenas alfobre, não de ricos mas de sempre novos-ricos.

A sociedade assim se vai arrastando incólume através do susto social. Temos personalidades relevantes mas mais alinhadas às ideologias e por isso símbolos apenas da ideologia e não da cultura nacional, símbolos desencaixados importadores de ideias desaferidas. Continua um Portugal devoto, só que agora do estrangeiro. Se o discurso cultural nacional tiver em conta não só o conteúdo e a forma mas também o sentido surgirá necessariamente o momento da distância. Aquilo que falta para todos dançarem sobre o tapete duma matriz cultural sempre renovada. O espírito internacional português será reduzido se a nação continuar a ser uma quinta de vinho do porto, antes de senhores ingleses e agora de senhores da União Europeia. Se assim permanecer só continuarão a viver bem os feitores duma nação terra de ninguém.

O fatal está na Nação não se dar conta da realidade do que tem sido, em grande parte, a história da política e do Estado português: uma história estranha de Caim e Abel não consumada e por isso prolongada na inveja. É o fadário dum povo ordeiro que não se sente e persiste, pela história fora em olhar só para o vermelho do pano do senhor toureiro. Falta-lhe a energia do dueto Caim e Abel, aquelas forças juntas que levam os judeus a serem cidadãos do mundo sem se diluírem na ideologia ou nos fenómenos do tempo. Em Portugal abundam os indivíduos e são escassos os cidadãos. Os que a República venera são mais representantes de ideologias peregrinas. São mais os Saramagos duma República em divórcio com a nação. Em Saramago fala o indivíduo, o estrangeiro não o cidadão. Assim, a Nação não acorda e o cidadão também não. Para uma nova cultura nacional seria óbvio que Saramago voltasse à nacao, ele personificando Caim que por sua vez biblicamente é símbolo da ciência, da arte e se reconciliasse com Abel também ele emigrado e que biblicamente é o símbolo da entrega à vida social, do bom servidor (símbolo da religião). Os filhos de Caim deram grande impulso à cultura, como senhores das vinhas (Mt.20,1-16). O prometido reconciliou Caim e Abel na sua pessoa (Jo.10,11-16). A tarefa será transformar um Portugal de filhos pródigos num reino republicano reconciliado.

© António da Cunha Duarte Justo
Pegadas do Tempo
antoniocunhajusto@googlemail.com

BOM NATAL PARA TODOS

NATAL PARA TODOS
António Justo
Natal, é a luz da vida
No frio da estação a brotar
É o aro das cores de Abril
No alvo da vista a acenar

É festa, stress, bolos, círios,
Parabéns, beijos e lágrimas
Encanto união convívio
Num só abraço ritual

Até das gretas da fraga
O amor viçoso desperta
Jesus na natura a se erguer
Num sol de carinho a dizer:
Não me vês a mim no outro?
Faço anos todos os dias!

É um vaivém de sonhos adiados
A viver de migalhas da rua
Em grutas tóxicas, sem abrigo
Noutros mesmo descarrilados

É o mundo da desarmonia
Dos natais não festejados
Na rua do dia a dia
Perdido de se encontrar

São sonhos engalanados em ruas iluminadas
Um incêndio de consumo em chama de ilusão
A saudade a abanar nas roupas da multidão
Uma confusão de compras, “Boas Festas”, “Desculpas” “Santinho”
A prendarem “encontrões”, “não tem de quê”, “Feliz natal”

É vida a saldo de vidas aladas
A pretexto do adorno da vida
Sob o guarda-chuva dum pobre menino,
E à custa dum deus bem-comportado

É hora dos magos do teatro da praça
Senhores sedutores de viseiras no rosto
Mandam o menino à fava, lá pró deserto
Ocupam tudo, é deles esta arena

Também no mofo do meu guarda-fato
Pendurada está a fé dum pé-descalço
Dum proletário, a vida dura a lembrar
E eu, a passar alheio no trilho do habitual
Sem ser Jesus, para o Jesus a esperar

A matilha desce à arena
Na dança de Mal e Bem
São os donos cá da terra
Seu natal a louvar também

Ao tilintar dos cristais,
Sob o holofote da atenção
No absurdo do Presépio
Dança o requinte do Banco

No seu mercado de estrelas
Brilha também o pinheiro
Só de consumo enfeitado
É natal prós do dinheiro

Lá no turbilhão da praça
Da poeira de seus gestos
Deixam a enganar a vista
Só fita, embrulho e laço

Na rua só, um gemido de Belém
Na folha arrastada pelo chão
Jesus de novo a sós co’ ele
No breu não luz mais ninguém

Adeusinho! Até pró ano
Meu Jesus de encomenda
Natal só brilho de laço
A unir a nossa prenda!

O estábulo continua sujo
Animais à má sorte vendidos
E José sempre desempregado
Natal, pensado mas não vivido!

Nas vitrinas da realidade
Não há prendas, não!
Para os que nada têm
Só natal em segunda mão

A aquecer a minha mão
Crepitam os sonhos dos outros
Que lenha do seu direito são
Na minha lareira a arder

No rosto de meus filhos
Minha infância rebrilha
Hoje como então é festa
À meia-noite é já dia

Vamos desvendar o natal
Para incendiar a praça
Não queremos viver mal
Sob o gelo da desgraça

Nas favelas da vida negra
A fé treme já de frio
Vamos acender as velas
Com fósforos de justiça

Viva a consoada
Vamos ao presépio,
À maternidade
Celebrar com todos
A fraternidade

Natal a dar de si,
É arte do viver sem nada
Natal a dar do outro,
É luz a dar-se a cada!
Natal mais que estar é ser
No semear sem colher

© António da Cunha Duarte Justo
“Rascunhos do Tempo”
Natal 2009