Escrever para ser
Ser no escrever
Escrita Criativa
É mais que criada
É ser na escrita
Tanta riqueza escondida, tanta gente condenada ao silêncio por medo do erro, por medo do erro gramatical, pelo medo de ser ferida pela palmatória pública! Por outro lado tantos senhores da verdade, tantos cães de guarda de prisões douradas dos bens de alguns roubados ao povo. Lá fora, fora dos muros altos do erro, da verdade, da ciência e do bem, uma outra prisão fantasma universal onde,cães soltos, fazem muita gente cativa, sem nada, privada da expressão, cativa do ser!
Vida ingrata, mero recibo com a vida paga ao credor fantasma que a vida engana. Porquê tanta obediência, tanta sujeição? Porque andar acorrentados de muro em muro a vida saltando? Ser pessoa é processo é tornar-se Logos, ser palavra. Um esforço de escrita criativa numa iniciativa desinibida chega a resultar num texto emocional que poderá constituir incentivo, para outros passos na construcção da grande poesia que é a vida e o mosaico da comunicação.
A Escrita criativa é um recurso tanto para crianças como para pedagogos e pessoas interessadas em exercitar um método muito eficaz de produção de escrita e de auto-experimentação.Há muitos tesouros enterrados e muita vida por descobrir, por expressar na maior parte de todos nós letrados e iletrados, viventes à margem, à margem de nós e da Vida. Por vezes atrás do Alguém que é Ninguém de Nenhures, apenas Inibições, fruto do medo, impedem-nos de escrever as próprias vivências e de dar expressão ao nosso ser. Atrás duma inibição esconde-se por vezes o desejo irrequieto de alguém demasiadamente preocupado com o produto texto. Esta fixação é, muitas vezes, motivadora de perfeicionismos formais perseguidores de crianças e coveiros de fantasia/criatividade, para não dizer do próprio ser. Tal como aprendemos a língua falando, aprendemos a escrever escrevendo. A criatividade é estranha ao negócio, não se ensina nem se aprende, ela é como o amor… supõe um encontro consigo mesmo, com o mundo. O segredo é estar aberto, abrir-se a si, ao universo; é ouvir, ver e sofrer prescutando o Outro no seu ser; é ler muito e escrever muito para o talento despertar e essa matéria prima que jaz em cada um de nós à espera de forma, à espera de ser dada à luz, num ambiente tranquilo, surgir, aprarecer e tornar-se consciência.
A escrita criativa é viva, não é uniforme. Cada um tem uma competência comunicativa específica mais ou menos bloqueada, independentemente do domínio de técnicas e estratégias de expressão.No mundo da escrita criativa, todos podem sonhar e criar uma realidade livre e justa. Aí, o medo dos erros será superado pela poesia da vida expressa que brota do próprio ámago, fonte donde jorra a vida vivida e não só pensada. Aí podem viver letrados e iletrados, sem medos nem complexos a aventura da vida o revibrar da sua poesia.
Fazer poesia é tentar ir à raiz das coisas,
Descansar do repetitivo, do habitual…
É uma maneira de olhar o mundo, de ser e de estar nele…
Uma forma mais real do que a vivida e propagada realidade. ..
É imaginar para lá das imagens a imagem que se é…
É não ligar à forma, nem física nem intelectual
É sentir… mais que prazer, alegria no escrever..
É dar-se como forma de vida…
É aprender o afecto, de gatas, na procura duma mão…
É amar sendo amado sem saber…
É encontrar-se no outro para nele desaparecer…
É deixar-se agarrar para amar e ser amado como bem apetecer…
Para lá da fronteira das normas e da moral,
Fora das cercas, dos muros e das convenções…
Despidos do pensamento, desmascarada a realidade…
Lá onde o amor é real… onde não se pensa, mas se pensa com o coração
Lá no intervalo da existência, da existência e das formas que passam a ser.
É ser vivência de eu e mundo reconciliados
É ser-se deles a expressão
Talvez uma brisa, uma onda, um vulcão!
É ser-se guitarra a tocar o mundo na mão!...
Na escrita criativa é importante criar-se um estado meditativo. Necessita-se de uma competência empática e comunicativa não sujeita apenas às normas da língua utilitária. Para começar poderia recorrer-se à escrita automática, escrevendo todos os dias durante meia hora, sem reflectir, tudo o que vier à caneta. Um lugar isolado, música instrumental, respiração ventral, favorecem a ressonância universal. Depois, não é importante se se opta por uma forma clássica com grande preocupação pela forma e regras ou se se escolhe a poesia visual onde o sentido da palavras evidencia o objecto ou o objecto evidencia o sentido das palavras e em que rima e sinais da pontuação se tornam desnecessários; ou se se opta pela poesia concreta em que a forma não tem interesse, por vezes sem sentido, sem sinais de pontuação, as palavras são todas minúsculas, talvez para levarem a pensar.
Mais que duma aprendizagem ou dum exercício trata-se duma consciência de ser que por vezes desemboca no tormento existencial vivido, na dor dramática que por vezes se expressa na magia das palavras daquele que vê o outro lado da realidade, o outro lado da vida. Sem medo do erro e sem receio de se estragarem as maquilhagens, é um salto na vida vivida não fingida! É importante deixar despertar em nós o que é inerente à pessoa, descobrir nas trevas que nos enredam sinais de realidades sublimes que só os iniciados nas coisas do coração podem vislumbrar ao descobrir as cordas da guitarra que se é. Então, escreve-se, tange-se com o coração o mundo nas mãos. No centro da criatividade produtiva está uma nova forma de pensar, de estar e de sentir. A escrita acontece num diálogo aberto, eu-tu-nós-ambiente. Surge em situações existênciais em que palavra e vivência entram em jogo criador numa trindade una de corpo-espírito-alma, eu-tu-mundo, produtor de fantasia a aconter.
A escrita criativa mais que método é processo centrado em si mesmo, palco e encenamento de experiência-vivência deixando o texto de ser produto para se tornar expressão lúdica, veículo e médium num processo de redescoberta e autoconsciência.
© António Justo
in “Rascunhos do Tempo” , 2005