Natal – A simbologia dum outro humanismo

Um humanismo para lá do religioso e do político

As representações mais antigas do nascimento de Jesus apresentam-no numa gruta, numa caverna. Os povos da Palestina costumavam usar as grutas para guarida dos animais. Maria deu à luz o filho numa gruta colocando-o na manjedoura dos animais, refere Lucas (2, 7). A tradição de representar o nascimento num curral começou só mais tarde, na época de Francisco de Assis, altura em que o pensar naturalista se estendeu à iconografia (1). A igreja oriental permaneceu com o motivo da gruta, da caverna. Este está recheado de sentido simbólico. A realidade divina com o natal torna-se história humana e vice-versa.
A gruta, ou caverna quer lembrar a racha ou fenda da terra que recorda também o seio feminino. O nascimento de Jesus na gruta simboliza a união do Céu com a terra sendo esta por aquele fecundada. A gruta é o lugar do acontecimento sagrado onde se realiza a fecundação da terra pelo céu.
Com o nascimento de Jesus na gruta foi quebrada a dura crusta do mundo e assim se torna livre o caminho para Deus e se abre o caminho do ser humano para si mesmo. Da caverna sai a luz. No seu desenvolvimento, o ser humano terá que entrar na gruta (na caverna) do coração; também ele terá de transpor a crusta do seu corpo para penetrar no seu coração onde se encontra o gene divino. Na caverna do coração repousa a luz, o gene divino à espera de poder perpassar o caos. O lugar de “refúgio”, a gruta é o lugar do encontro, do renascimento, da regeneração.
Os arquétipos Jesus, Gruta, Maria e a comunidade que nasce da gruta tornam-se visíveis evidenciando-se a sua realidade simbólica no acontecimento da incarnação (Natal). O símbolo, mais que um sinal duma realidade, é a manifestação da verdadeira realidade na esfera espacio – temporal. É a realidade total (divina) que se presencializa. Ao lado de Jesus encontram-se também o burro e a vaca, símbolos das forças da luz e das trevas. Os dois bafejam-no e num acto de submissão entregam-lhe essas forças.
No Natal vive-se o tempo do coração, a gruta onde se encontra a sabedoria à espera de ser abordada e concretizada. Também a mística do coração de Jesus tem a ver com a gruta nas imagens arquétipo.
Quem quer renascer terá de entrar na gruta, no coração da terra, no coração do ser humano, em si mesmo. A regeneração dá-se no coração de Cristo, no próprio coração, que é a gruta do nascimento do verdadeiro Homem e da Comunidade. Na gruta, no coração se encontrará o pai do ser. Aí se gera o novo ser donde nascerá uma consciência nova integral. Nos albergues não há lugar para o renascimento atendendo a que o novo não pode surgir sob a influência do velho. O novo homem terá que nascer longe da esfera das forças dominantes.
Na simbologia natalícia sobressai também a virgindade, a imagem duma mulher que se encontra em relação com Deus sem intervenção do homem nem de instituição humana. Aqui surge uma nova criação da humanidade que se expressa em Jesus Cristo, o ser soberano, o novo Homem, nós. Em mim se gera a realidade humano-divina Jesus Cristo.
Com a incarnação passa-se a uma correlação humano – divina; a matéria possui o gene divino. Com a nova Eva o ser humano não se define apenas pelo parentesco, não se explica pelo acto sexual, nem tão-pouco por um acto evolutivo mas pela relação directa com Deus. A simbologia cria uma ligação com a realidade da vida do homem e de toda a natureza. Ela abre um novo mundo em que é possível a existência do homem livre e libertador, salvador. O homem é libertado das suas relações ambientais, do ter, da família e das autoridades. Surge uma nova consciência humana, para lá das morais. Na sua saudade vital ele participa da redenção e continua-a; realiza o que em Cristo se pode ver já na antecipação, no processo histórico do desenvolvimento.
Na incarnação a esfera divina interpenetra-se com a esfera humana, com Maria, a mãe terra, sem intervenção natural. Na realidade natalícia o céu e a terra manifestam-se assim numa relação bipolar, sem antagonismos. (O antagonismo e a dialéctica pertencem ao mundo da realidade superficialmente perceptível, à fenomenologia). Com a incarnação a divindade materializa-se em Jesus e espiritualiza-se pela ressurreição no Cristo, unificando-se em Jesus Cristo o protótipo da realidade, o protótipo do ser humano, da relação bipolar humano – divina. Neste processo a abertura é o pressuposto do acto criador e da maternidade. A maternidade torna-se também ela o processo gerador contínuo da nova realidade, uma relação bipolar mãe – filho, matéria – espírito.
Há uma correlação entre o nascimento na gruta e o parto virginal. A terra e a mãe dão à luz… Com o Natal irrompe no tempo a criatividade e a inspiração.
Somos terra, terra a tornar-nos mãe. Neste processo acontece natal… dá-se à luz: para isso não é preciso ser-se religioso nem ateu, é-se Homem.
Não se trata aqui de cair num espiritualismo ingénuo dado que a componente terra está bem presente na simbologia da cruz. O lugar do ser humano não é o da fantasia mas o da história com as suas realidades. Este pressupõe porém uma nova consciência, um novo modo de pensar, sentir e agir. Tudo em correlação dum diálogo recíproco do mundo da experiência humana. Esta é a mensagem a ser compreendida por religião, política, economia e sociedade. Doutro modo continuaremos a viver e a agir na pré-história do espírito – matéria.
A realidade do Natal com a sua simbologia vem dar luz sobre as ambivalências da vida e abrir-lhes novas perspectivas a nível social, religioso, político e pessoal. Trata-se portanto de, nos nossos actos paternais, maternais, filiais (fraternais, maritais e humanos), concretizarmos o humano – divino, de presencializarmos o Natal (a incarnação).

António da Cunha Duarte Justo
In “ Pegadas do Tempo”

(1) Desejo notar aqui, para aqueles que sigam mais o pensar linear, o pensar lógico, que há várias maneiras de abordar a realidade e que o pensar lógico é diferente do pensar simbólico, por imagens. De facto há uma correlação entra a verdade mítica e a verdade histórica. A histórica é apenas a leitura perspectivista espacio-temporal da realidade enquanto que a simbólica mítica é aperspectivista, integral, englobando também a primeira, sendo pluridimensional. A realidade mítica inclui também a realidade natural e histórica. Trata-se duma interpretação integral coração – razão e não apenas duma interpretação lógica, mental. Coração e razão unem-se na tentativa de percepção da Realidade.

António da Cunha Duarte Justo

Ousar o futuro

Porque não tentar tornar-nos num clube contra a entropia?
Este espaço, poderia ser encarado como uma plataforma de discussão das próprias ideias, dos próprios projectos no sentido duma sinergia de esforços na descoberta duma nova realidade e duma nova praxis. Seria pressuposto partirmos duma consciência comum de servidores do espírito, trabalhando no desenvolvimento duma nova consciência ao serviço da humanidade e da natureza, numa tentativa de desinfecção da nossa civilização e do nosso dia a dia. Em missão nobre aceitaríamos o erro como parte da realidade humana, diria mesmo, como parte da verdade. (1)
Tratar-se-ia duma tentativa de escrever e actuar que não se fixe no velho paradigma dualista subjacente ao pensar corrente e ao modo actual de organizar a vida. Tratar-se-ia duma nova maneira de organizar a vida coerentemente no sentido de se criar uma sintonia e interferência integrativa do pensar, sentir e agir. Na minha maneira de dizer poderia resumir-se em passar do existir (pensar, sentir actuar) actuar binário para o trinitário. Parte-se duma forma da realidade em que os extremos se unem e em que, analogicamente ao fenómeno da electricidade, dos pólos positivo e negativo surge uma nova expressão da realidade que é a luz. Iniciar-se-ia o caminho da descoberta duma nova maneira de pensar-sentir-agir consentâneo. Tentar-se-ia descobrir o fundamento trinitário da Realidade que constitui como que a grelha base das grandes culturas e criar uma consciência, uma mundivisao de cunho místico-simbólico (2).
Pomo-nos nas pegadas do desenvolvimento qualitativo, dum novo grau, de uma categoria superior que transcende a categoria do pensar dicotómico espírito-matéria, bem-mal.
Para isso será necessário o exercício do pensar místico (meditativo-simbólico) como pressuposto para uma nova forma de estar no mundo. Vale a pena seguir todas as iniciativas que procuram tentar um irromper o futuro. Para isso teremos de renascer para podermos mudar todas as craveiras, os critérios ou normas com que costumamos medir a realidade e pautar o nosso agir.
Ousemos tornar o futuro presente, ousemos, no respeito e ligação ao passado, quebrar as correntes que a ele nos amarram. Ousemos a liberdade na vivência duma nova ética.
Aqui dar-se-ia expressão às forças da nova consciência que aqui e acolá se torna visível mas apenas a nível individual.
O mundo encontra-se incendiado vendo-se por todo o lado as chamas da dialéctica. Só uma nova forma de estar, uma nova consciência conseguirá interferir e mudar o curso da história. Na nova consciência, nesta nova apreensão da realidade a dualidade dissolve-se, resolve-se na trindade. Aqui o sujeito já não se encontra em contradição com o objecto. Estes realizam-se na Realidade trinitária integral, no espírito que é comum às partes aparentemente isoladas ou contraditórias.
O mundo está doente connosco. Porém da febre que nos abafa poderá ressurgir um novo espírito, uma nova geração.
Vale a pena descobrir a realidade tentando ver o que está por trás dela. O homo faber o homo politicus e o homo religiosus não têm sabido dar resposta às aspirações da humanidade limitando-se apenas de forma diversificada a repetir de época para época, a cadeia do mesmo modelo, da exploração do Homem pelo Homem, numa dinâmica do divide et impera. Uma pequena parte da humanidade já se começa a dar conta do ciclo vicioso em que tem vivido e do labirinto em que se meteu. Por isso não poderá continuar por muito tempo a ser vítima e criar vítimas dando continuidade à cadeia de reacções em que se tem vivido até hoje.
Para já trata-se de criar uma nova consciência e não de criar um mundo perfeito. No novo estado tudo é processo dinâmico, tudo é relação, tal como a realidade dos três num só. Aí já não teremos de procurar o bem ou o mal lá fora, no outro, porque estes são apenas momentos materializados duma realidade única que é processo. Então poderemos dar oportunidade a um novo mundo a ser gerado e dado à luz. Para continuar no simbólico, nós já temos o exemplo do cúmulo da criação, da consumação do mundo e do passado e da concretização do futuro a priori e a posteriori em Jesus Cristo; não no da religião mas no da vida, no do cristianismo. O elemento religioso é apenas um aspecto duma realidade aperspectiva. Jesus Cristo é o resumo da revelação, do Homem e da história.
Não se trata aqui da construção dum mundo melhor mas dum mundo diferente, a caminho da verdade. Para isso torna-se importante a descoberta do gene divina no próprio íntimo, no íntimo de toda a realidade e então surgirá o fogo do espírito que arde no coração e nos levará a um olhar e ver diferentes. Da dor do parto sai a vida, surge a luz. E nós tornados então filhos da luz conseguiremos passar do deserto para a terra prometida.
Trata-se de colocar a dialéctica, a tese e antítese, numa unidade dinâmica criadora também superadora da dicotomia dos pólos Yin e Yang no sentido duma realidade tripessoal.
É superar o pensar paradoxal ou polarizador das disciplinas e das ciências para as integrar numa relação interdisciplinar na consciência que ao fixar-se o objecto de observação sobre um pólo se corre o perigo de perder ou negar o outro. No reconhecimento da dicotomia fenomenológica do ser humano, trata-se de descobrir que a variedade das cores do arco-íris se reduzem a uma cor só e embora a sua essência esteja na união, essa união só se torna fenomenologicamente perceptível na expressa da sua multiplicidade.
As feições divinas e eternas tornam-se visíveis nas formas e aparências da matéria; no âmago do nosso ser, do universo torna-se visível o espírito do todo. O que se apercebe a uma visão superficial como antagónico, como independente revela-se aqui como uma realidade única da qual surge a personificação das relações processuais entre “ser” e estar.
António Justo
Teólogo
In “ Pegadas do Tempo”

(1) Peço desde já desculpa, em relacao a este e a outros textos do passado ou do futuro por erros e muitas imperfeições que provenham directamente da minha pessoa ou que sejam devidas ao facto de escrever tudo à pressa sem tempo para rever ou repensar o que escrevo.
(2) Aqueles que seguem mais o pensar racional dialéctico, baseado nas várias materializações da realidade, da história e das filosofias como dados estáticos existentes por si mesmos, estão convidados a não se chatearem logo à partida e tentarem conceder aos interlocutores um bónus quer de erro quer de verdade na procura duma visão mística e simbólica da realidade e dos acontecimentos naturais e históricos.

António da Cunha Duarte Justo

PCP castiga Luísa Mesquita

É lamentável o modo como o partido PC trata Luísa Mesquita, deputada comunista, que embora sob a perspectiva do partido, tem sido uma mulher que se tem interessado a sério pelos problemas dos emigrantes. Embora não pertença ao meu partido, que é o do arco-íris, reconheci sempre nela muita competência, não restringindo o seu mandato a encostar-se aos consulados e a pessoas que não façam sombra… Nas discussões ela mostrava conhecer a problemática migrante por dentro e não apenas por ouvir dizer. Escutava todos e não evitava ninguém, o que já se não pode dizer do seu colega pela emigração na Europa.
Mesquita tem motivo para estar estupefacta e magoada. Os interesses do PC não serão os dos emigrantes. Estes não se deixam submeter a malhas partidárias demasiado fortes. Como castigo pela sua recusa em deixar o seu mandato a deputada só fica integrada na comissão parlamentar da saúde. Luísa Mesquita terá agora mais liberdade para dar menos ouvidos às razões do partido e seguir melhor a própria consciência! Agora poderá defender os interesses dos emigrantes em Portugal, porque aí há pouco quem os defenda!
António da Cunha Duarte Justo

António da Cunha Duarte Justo

MOZART NAS MÃOS DE FUNDAMENTALISTAS?

A Alemanha dedicou o ano 2006 a Mozart. A Ópera “Idomeneo de Sebastian Amadeus Mozart encenada por Hans Neuenfels na “Komischen Oper” em Berlim revelou-se num escândalo ao mostrar o rei Idomeneo com as cabeças decapitadas de Poseidon, Jesus, Buda e Maomé, facto este que provocou ameaças por parte de muçulmanos, levoando a Deutsch Oper de Berlim a cancelar as representações previstas até amanhã, dia 26 de Novembro, dia em que seria encenada a peça da Ópera “Flauta Mágica de Mozart. A encenação apresentada por Hans Neuenfels distorce a Ópera de Mozart colocando-a ao serviço da ideologia contra Deus.
O encenador interpreta aí a perfeição da obra de Mozart como um recalcamento, uma tentativa de reprimir a fragilidade humana contra a realidade existencial. Projecta nele a visão do ser humano como um defeito de construção. Muitos artistas, na incapacidade de criarem novos modelos, apenas reagem continuando amarrados às ideologias do século XIX sem sequer terem notado a revolução quântica e a relatividade na física do século XX. Desconhecem as exigências do novo século vivendo ainda das exterioridades consumistas dum século trágico. Encostam-se aos velhos símbolos de identificação dum país ou duma civilização, criticando-os e ridicularizando-os. Estão certos de que, ao fazê-lo, receberão as atenções dum público distraído e superficial que só reage ao escândalo. Tornou-se já moda de decadentes actuarem contra mitos e contra as coisas mais sagradas duma cultura para melhor poderem encher as caixas das bilheteiras e para se tornarem célebres. Não conhecem o sagrado, a honra, o sentido. Incapazes de relação só conseguem desligar, desordenar! Destroem os modelos das sociedades do passado sem alternativa para o futuro porque lhes falta uma visão de sociedade, um projecto. Limitam-se a recusar qualquer modelo afirmativo ou qualquer projecto de sociedade futura. Querem apenas uma realidade no seu estado primitivo, caótico e sem sentido. Encontram-se numa fase regressiva padecendo da cabeça, duma intelectualidade selectiva que não quer Deus mas apenas ídolos.

Ruminadores da verdade ao serviço do precariado
Usam e abusam dos representantes consumados duma cultura, dum povo, dos seus elementos fomentadores (referências) de identidade, como meios para se encenarem a si mesmos. Dão expressão ao acto destrutivo, ao thanatos, satisfazendo-se e limitando-se a decapitar os modelos antigos na incapacidade de criar novos. Com uma atitude adolescente só sabem protestar contra o pai ou contra a mãe que lhes deu o ser. Não se sentem na tradição criativa divina mas na intervenção destrutiva, “diabólica”. Não querem aceitar a realidade de que Mozart era de facto um compositor de Deus e para isso apresentam a arte de Mozart não como afirmação, como procura de Deus mas como um contra modelo, um projecto rival. Isso porque não aceitam que o ser humano se oriente pelo perfeccionismo, por Deus. Recusam-se a aceitar a grelha divina como a forma, a pauta em que Mozart procura lançar as suas notas.
Representantes duma cultura do precariado, uma cultura decadente, não aceitam que o homem se oriente pela ideia do bem, pela perfeição. Mozart era demasiado católico para um mundo que se quer protestante, niilista. Não aceitam um Deus humano que poderia trazer consequências para o próprio projecto humano. Não conseguiram ainda compreender que a grandeza do cristianismo é ter elevado a culpa, a falha à divindade na teologia da cruz. Só conseguem conceber o mundo em termos contraditórios de matéria espírito, de aquém-além, de bem-mal, verdade-mentira considerando-se a si mesmos como os ruminadores da verdade. Na encenação “ Idomeneo” Cristo e outros representantes das religiões são decapitados e colocados no mesmo tabuleiro porque são vistos como os responsáveis da afirmação da ideia de Deus, duma ordem no mundo. O fanatismo racionalista usa aqui os mesmos meios que o fanatismo religioso tem usado para se afirmar. Inconscientes de que são portadores do mesmo vírus que os fanáticos religiosos combatem o mundo daqueles com a mentalidade deles. Contra toda a ligação e compromisso, com o seu à parte, em Idomeneo afirmam-se como os representantes do niilismo moderno não notando que este já foi ultrapassado. Identificam toda a tradição como ilusão e no desespero duma vida não vivida cortam a cabeça aos símbolos dessa tradição. Ao desligar-se assim de todas as ligações reduzem o horizonte humano à substância original que seria o caos, que querem à sua maneira.

No Reino dos Cegos quem tem um Olho é Rei
Assim se procura minar todos os fundamentos humanos e sociais oferecendo em vez da Ilusão da salvação, a ilusão do desespero. Interpretam mal Cristo reduzindo-o a um revisor ou bilheteiro da eternidade. Não querem saber para poderem ter razão. O cristianismo não se limita a distribuir bilhetes de ida e volta para o mundo da ilusão, ele não se deixa reduzir ao folclore religioso que muitas vezes apreenderam nas paróquias ou num discurso religioso superficial que reduz o cristianismo apenas a religião. O cristianismo não adia a vida para depois, para o alem, pelo contrário antecipa-a. O adiamento parece uma constante, uma espécie de condicionalismo humano tanto na chamada vida religiosa como na laica. O ser consciente contraria essa tendência. A vida não se reduz a um jogo de excursões da vida.
Mozart quer mostrar com a sua perfeição musical a harmonia divina que resolve todos os contrastes. A cena das cabeças cortadas foi uma interpolação abusiva.
O homem moderno não suporta a perfeição. No novo século ainda rebentam os últimos foguetes do último século que nos querem prostrados no chão, de rasto na afirmação da própria negatividade, querem-nos serpente, quando o século XXI anseia por um novo homem, um novo Deus, quer reencontrar o sentido. A essência do homem é reconhecer e amar.
No fim de Novembro, Hans Neutenfels encenará na mesma Ópera de Berlim A “Flauta Mágica”. Oxalá esta não passe pelas mesmas peripécias porque passou “Idomeneo” dado que também ela se presta a muitíssimas interpretações. Além disso é uma ópera de carácter iluminista, carregada de grande simbologia maçónica podendo dar azo a uma manifestação provocante no dia a dia da luta cultural subjacente à maçonaria. Temos o teatro, o outro templo, o lugar secular, o outro lado onde o outro homo religiosus participa no rito do sacrifício: aqui imola-se, mata-se Deus. Parece que a diferença dos devotos está apenas nos lugares frequentados. Afinal a diferença não é essencial nem qualitativa. Se é verdade que é preciso limpar as teias de aranha e o caruncho da religião cristã, não é menos verdade que é necessário acabar com a arrogância racionalista que quer que a origem do mundo comece na revolução francesa e no extremismo do seu racionalismo. Este quer acabar com a memória colectiva da civilização cristã. O extremismo religioso e o extremismo racionalista (iluminista) são iguais na sua essência, na sua estratégia e nos seus fins: uns agarram-se à divindade Deus e os outros à divindade Razão. Quem separa a unidade razão-coração, a razão do coração fomenta duas ditaduras.

A alternativa à catástrofe do século XXI será a Mística
O século XXI talvez chegue a compreender e a aceitar a perfeição, (onde a harmonia dos contrários atinge a nível musical tal perfeição, a que poderíamos chamar de estagnação, o ponto da ressonância perfeita dos elementos) alcançada no terceto entre Sarastro, Tamino e Pamina da “Flauta Mágica”. Este estado da consciência é insuportável para uma cultura que no século XIX e XX observa a realidade pelo prisma do paradigma dialéctico, do contraditório. Apesar das mais diversas e contraditórias forças Mozart consegue-lhe o substrato comum na divindade do ser. Mozart resolve aqui a contradição fazendo-a desaguar na perfeição harmónica. Ele não faz senão resolver na música o que crê e misticamente experimenta na realidade da trindade, expressa na fórmula trinitária 3=1. A Realidade, a divindade, que é uma, diferencia-se para se manifestar na forma do Espírito gerador (Pai), na matéria (Jesus) que na relação se torna Matéria divinizada (Jesus Cristo), o protótipo de toda a realidade que deixa de ser antagónica e bipolar para se realizar e expressar na harmonia do espírito criativo: o eu no nós e vice-versa. Ele é o “lugar” onde se une e resolve a aparente dicotomia entre o indivíduo e o outro. Estes resolvem-se na harmonia do 1=3, não havendo mais contradição entre a personalidade e a comunidade, entre cultura regional e global; a desarmonia resolve-se através do espírito informador que é o terceiro elemento pessoal. Aqui encontramo-nos já na via mística que une razão e coração; sintoniza pensar, sentir e agir.
Nesta visão já não seria necessário transformar a beleza e a harmonia nem tão-pouco a dissonância num cavalo de batalha como se fossem inimigas e distorcidoras duma realidade que se quer bruta. Enquanto cada pólo antagónico pretender persistir e subsistir por si mesmo sem o terceiro elemento (o espírito, o Amor) nada se mudará no agir individual e social. Por isso são alérgicos ao equador, procurando viver na extremidade polar, optando pelo oposto, tal como se vê no niilismo, no espiritualismo, na música desarmónica, no partidarismo político que sendo apenas um pólo da realidade o afirmam como a visão e solução da realidade.

A Essência da Treva é a Luz
No Idealismo alemão e na música de Mozart e de Bach, a realidade atinge a perfeição superando a ideia de mundo como campo de batalha onde se trava o combate dos bons contra os maus. Há uma tentativa de integrar e revalorizar todas as forças e energias num interrelacionamento subsidiário. Quer-se descobrir a interioridade do agir, do pensar e do sentir. Essa tentativa foi contrariada pelo realismo que se lhe seguiu.
Os fundamentalistas da arte tornam-se alérgicos a uma forma perfeita repudiando a aspiração estética orientada para harmonia criacionista. A estética passa a ser vista como atentado à realidade, visto a beleza e o bem serem expressão duma ordem, duma estética estabelecida que vincula a pessoa a valores condicionadores da atitude e do agir. Numa palavra querem apenas notas musicais sem pauta e sem escala de notas, pretendendo a negação da música. A destruição da escala porém não implicou a destruição da relação factual das notas entre si, o que lhes causa problemas. Alérgicos à realidade popular e ao seu folclore vão para o outro oposto e declaram-se cacofónicos e apologistas duma música sem escala. Colocam-se no outro extremo da verdade, combatendo-a daí. Se para uns a noite é muito escura para outros o dia demasiado encandeante. Uns não vêm a realidade devido à demasiada luz outros devido à demasiada escuridão. Uns e outros não notaram que a essência das trevas é a luz…
Isto já o tinha reconhecido Paulo ao afirmar: Oh Félix culpa!… Não se trata da perfeição pela perfeição mas dum processo com sentido. A aceitação da fraqueza como elemento cultural e da comunicação é um axioma sempre presente na teologia da cruz. As nossas sombras não passam de formas de sofrimento, momentos da dor e do prazer. Se é verdade que a morte é mais natural que o amor, a força do amor é que tudo sustenta. O niilismo quer reduzir a vida à morte expressando o Eros como uma forma da morte. Se a dor nos acorda e conduz à intimidade de nós mesmos o amor relega-nos ao todo. A criatura tem de se assumir como tal e aceitar a realidade com as suas leis bem como o que as suporta.
Deus escreve direito por linhas tortas e Wolfgang A. Mozart conseguiu a ressonância humana na pauta divina.
António da Cunha Duarte Justo
Teólogo
In “ Pegadas do Tempo”

António da Cunha Duarte Justo

O ESTADO PARTIDÁRIO EM CRISE

O Ressurgir duma Nova Consciência Burguesa (1)
O vulcão da religião estremece por todo o lado podendo vir a criar grandes convulsões no mundo. ADe momento, aEuropa acorda e Deus levanta o dedo!
Com a queda do muro de Berlim em 1989 a secularização recebe um grande abalo e as ideologias marxistas perdem o seu encanto. Com a bancarrota do sistema soviético o mundo modifica-se. A política e as elites desacreditam-se. O fanatismo religioso e ateu acentuam-se. Por um lado assiste-se a uma fé infantil cordial e por outro a uma crença arrogante ateísta racionalista. Uns vivem da fé “Deus criou o homem” outros da crença “o Homem criou Deus”.
Os tempos que correm são propícios para fanatismos. A crise e o medo fomentam o sentimento de pertença. O movimento de Fátima parece ganhar razão.
A Europa que no século XIX tinha processado Deus (Marx, Nitzsche, etc), no século XX executou-o, colocando no seu lugar a deusa Liberdade.
As sementes lançadas no século XIX e a proclamada morte de Deus transformam o século XX no mais sangrento de todos os tempos que culminou na “segunda guerra mundial, atiçada por ateístas radicais” ,( Wolfram Weimer, in “Credo”).
Com a experiência das guerras a política consegue triunfos a nível material e mais desilusão a nível humano. A classe política parece ter chegado aos seus limites tornando-se cada vez se menos credível. Desiludidos de Deus e da burguesia, os políticos já não têm convicções, são frios. A convicção e a paixão cada vez se encontram mais da parte do povo, duma camada média, a burguesia maltratada que parecia já ter perdido o espírito.
Hoje, essa “burguesia”, da qual sempre dependeu o desenvolvimento cultural das sociedades, começa a redescobrir-se e a afirmar-se religiosa. Isto tem muito que se lhe diga porque ela é que arrasta a carroça social, e é determinante no seu meio, intervindo e assumindo sempre responsabilidade histórica no desenvolvimento. O resto segue ou aproveita-se mais ou menos inconscientemente da caravana, vivendo de filosofias coniventes com as próprias carências, à medida das necessidades do dia a dia. As elites começam a acordar da Bela Adormecida. Da nova burguesia surgirão os caudilhos de amanhã que porão o mundo na sua ordem.
Se é verdade que o pão é que mata a fome, não se pode desprezar o facto de que o ser humano traz consigo a fome do espírito, a fome da transcendência, que reconhece como sua coluna vertebral. A necessidade é determinada pela camada média da sociedade, pelos que já têm o suficiente para estarem disponíveis a poder pensar.
As orgias intelectuais ideológicas contra a burguesia e seus valores já não entusiasmam nem convencem, desqualificando-se e auto-marginalizando-se. Até à década de 90 viveu-se um tempo de adolescência interessante. Só que os adolescentes de então, os socialistas de ontem ocupam hoje as chefias da banca, das administrações públicas, do jornalismo e mesmo de muitos lugares da indústria.
O processo decadente que se deu no sistema comunista soviético repete-se na sociedade ocidental nos seus representantes institucionais. Nos sistemas socialistas há sempre uma pesada administração totalmente controlada por uma pequena nomenclatura ideológica todo-poderosa. Nos tempos que correm e que são de miséria ideológica e social, é utópico e míope querer reduzir-se a política a administração, tal como naquele sistema. Os socialistas do lado de cá, do post real-socialismo, e os superficiais conservadores sem espírito têm-lhe seguido as pegadas, acreditando todos numa sociedade planificável o que os têm levado a fomentar o poder das administrações e da burocracia. Ainda não notaram que o muro de Berlim já caiu. Ele caiu historicamente mas ainda não caiu nas cabeças de muitos políticos e intelectuais. Isto emperra o andar da história, tornando-se muitos dos progressistas, nos seus empecilhos. Sócrates luta contra este demónio bem instalado mas falta-lhe a água benta e o testemunho.
Falta a reflexão e a empatia. A política empírica instalada dá lugar a uma espécie de nepotismo ideológico à maneira de establishment formal. Na política repete-se o que muitas vezes acontece no casamento. Uma pessoa enamora-se e, sem preparação, casa-se. Depois arranja-se e, finalmente, divorcia-se, deixando atrás de si um montão de cacos.
O pensamento que está por trás da política a partir dos anos 60 partiu dum falso pressuposto: destruir o espaço religioso e os valores da burguesia para criar um espaço livre da política onde o cidadão indivíduo se possa desenvolver sem entraves nem responsabilidades. Como se observa pela crise cultural e de valores em que vivemos, essa ideologia deu barraca mas o infantilismo continua. A política, ao arrogar-se para si o sentido, perdeu o sentido do político. Ao açambarcar para si o espaço da liberdade destrói a Liberdade, o último sentido da política. Como a acção política se reduz a administrar renuncia-se à argumentação política. Equivocou-se ao transformar o (Estado) espaço livre de actuação dos cidadãos numa instância paternalista em que se vinculam uns conglomerados de cidadãos proletários, de prosélitos e se distribuem benesses a clientelas. Pela crise vê-se que isto não chega para fazer política. O século XX cometeu um grande erro: desconhecer o conceito de cidadão desonrando-o ao transformá-lo em cliente em proletário do Estado, à disposição dos partidos, que se apoderaram do Estado. Já os regimes socialistas o tinham reduzido a proletário. Assiste-se quer no sistema marxista quer no sistema ocidental à instrumentalização, politização total do ser humano. A liberdade começa onde a lei acaba. A política tinha-se esquecido de Platão e do Catolicismo que recordam: quem suprime Deus e a Verdade acaba com a política e destroi o Homem!
Toda a cultura é filha da religião e a nossa cultura é filha da religião judaico-cristã depois de muitos anos de ruminação e integração doutras culturas em especial a greco-romana. Quem, com responsabilidade política e cultural não reconhecer essa realidade, como o ser da sua forma de estar, descarrila-se e não chega a lugar nenhum. A crença religiosa e a crença ateísta se querem tornar-se responsáveis terão de se dar as mãos. As duas são filhas do mesmo pai, o cristianismo. Trata-se de ssumir juntos a responsabilidade do futuro para o realizar e possibilitar. Com a queda da civilização cristã o mundo ficaria às escuras. Trata-se de a aperfeiçoar, sublimar e pôr ao serviço da humanidade e do Homem em sintonia e sinergia de esforços.
António da Cunha Duarte Justo
In “ Pegadas do Tempo”
(1) Primeira parte

António da Cunha Duarte Justo