O JARDIM DIVIDIDO

Elegia sobre o Século amnésico

Reflexão poética sobre o conflito na Ucrânia e os descaminhos da civilização ocidental

O Senhor do Jardim Ocidental

Nas alamedas de Bruxelas, o velho jardineiro conta moedas de ouro sobre terra estéril, esquecido de quando plantava e agora apenas colhe o que outros semearam com suor e esperança.

Os seus olhos, tornados cataratas de memória selectiva, já não veem rebentos novos nem flores no jardim alheio: só enxergam ervas daninhas onde florescem ciprestes, invasores onde crescem raízes milenares.

O atlas nas suas mãos trémulas mostra fronteiras desenhadas à régua sobre rios vivos, cercas onde antes corriam crianças e muros onde o vento dançava livre.

Ávido de poder diz ele aos seus parceiros: “Expandamos o canteiro! Que toda a seara se torne nossa quinta!” Mas a terra, velha mãe, recusa-se a parir para quem só conhece o arado da conquista.

A Casa do Leste

Do outro lado do jardim, a casa de pedra resiste. Velha também, cicatrizes de invernos que ninguém recorda, mas com celeiros cheios e fornalha acesa, memória longa de quem sobreviveu ao degelo.

Ofereceram-lhe papéis perfumados de Bruxelas, tratados escritos em tinta que desvanece ao sol, promessas de parceria que soavam a corrente, abraços que escondiam algemas de veludo.

“Serás nosso pomar”, diziam os do Ocidente, “teus frutos para nós, tua sede para ti.” Mas a casa de pedra conhece essa canção antiga: já a cantaram outros impérios, tornados agora pó.

A Jovem entre Dois Fogos

Entre os jardins, a jovem Ucrânia, filha de ambos, reconhecida por nenhum como igual. Prometeram-lhe vestidos de seda ocidental, se renegasse a metade do sangue eslavo que corre nas suas veias.

Teceram-lhe sonhos em Bruxelas: “Serás europeia!” (Mas nunca disseram: serás família, serás irmã.) Encheram-lhe os ouvidos de melodias douradas enquanto lhe esvaziavam os celeiros e a alma.

Os seus oligarcas, corvos em pele de pomba, venderam-na em leilão a quem mais ouro oferecia. Transformaram-na em Troia, cavalo oco de promessas, prenhe não de guerreiros, mas de caros mísseis alheios.

E o seu povo? Ah, o seu povo multicultural, russo e ucraniano entrelaçado como trigo e centeio, viu-se obrigado a escolher entre metades de si mesmo, a amputar-se para caber em bandeiras emprestadas.

A Demência dos Velhos Impérios

O Ocidente, senhor outrora de luzes, razão e vontade própria, que deu ao mundo Bach e Pessoa, Newton e Cervantes, entra na charneca no século XXI como o “Rei Lear” na tragédia de William Shakespeare: coroa torta, cetro partido, memória em frangalhos.

Não reconhece os filhos que educou e cresceram, passando a gritar “traição!” quando eles querem voz própria; chama “ameaça” ao vizinho que fortifica a sua casa depois de décadas a ver cercas a aproximarem-se.

A OTAN, outrora escudo, tornou-se lança errante, procurando dragões onde há apenas orgulho ferido. Expandiu-se como mancha de óleo sobre a água, até tocar a pele do urso que tinha jurado não despertar.

A Auto-Hipnose Colectiva

Nos écrans luminosos, a verdade dança distorcida: “Defendemos a liberdade!” (Mas quem lucra com as armas?) “Protegemos a democracia!” (Mas quem escolheu esta guerra?) “Salvamos a Europa!” (Mas quem paga a factura de sangue?)

Os contribuintes ingénuos, ovelhas tosquiadas, financiam foguetes com o pão dos seus filhos, aplaudem discursos de líderes em palácios aquecidos enquanto o povo europeu treme de frio e dívida.

A máquina mediática, coesa como formigueiro, repete o mantra até parecer evangelho: “O inimigo está à porta! Precisamos mais armas!” (Mas ninguém pergunta: quem levou a porta à casa dele?)

O Preço da vã Glória

Como Camões cantou da “vã cobiça” que lançou naus portuguesas ao abismo, hoje a arrogância ocidental prepara não descobrimentos, mas o próprio naufrágio.

Querem transformar culturas milenares em sucursais da sua cosmovisão única, impor um globalismo sem raízes onde todos pensem com o mesmo chip implantado.

Chamam-lhe “progresso”: um mundo pasteurizado (esterilizado) a diversidade é crime de pensamento, onde o humanismo é “obstáculo à eficiência” e o cidadão é código de barras ambulante.

O Berço Traído

A Ucrânia, que poderia ser ponte, unir leste e oeste como Kiev, no passado, uniu Escandinávia e Bizâncio, foi seduzida a tornar-se fossa, trincheira onde se enterram os sonhos de reconciliação.

Traiu a sua própria multiplicidade, a riqueza de ser encruzilhada de línguas e santos, por promessas ocas de “integração europeia” que significava apenas: seja nosso posto avançado.

E o povo ucraniano, esse é o verdadeiro mártir: não dos russos nem dos americanos, mas dos seus próprios traidores domésticos que venderam pátria em troca de iates e mansões.

A Credibilidade Desmoronada

O povo europeu, de cabeça baixa, começa a não reconhecer no espelho mediático a realidade que palpa com as próprias mãos: inflação galopante, futuro hipotecado, inverno gelado.

A fé nas instituições esfarela-se como pão velho. A UE, catedral sem fiéis, soa oca. A NATO, gigante de pés de barro, sustém-se apenas no medo que semeia.

Mas um povo que ainda estima a honra não pode viver indefinidamente de joelhos. A dor acumula-se, combustível lento, até ao dia em que a pilha de mentiras desmorona.

O Olhar Benigno Ausente

Falta ao Ocidente o que outrora possuiu: a compaixão nascida da própria vulnerabilidade, a humildade de quem sabe que civilizações ascendem, brilham e fenecem como estrelas.

Substituíram a sabedoria pelo militarismo, o diálogo pelo chicote económico, a parceria pela subjugação, o amor pelo medo como ferramenta de controlo.

Mas não se constrói paz sobre terror, nem ordem sobre ressentimento acumulado. O império mental que tentam erigir será prisão também para os seus carcereiros.

Elegia pelo Bem Comum

É preciso um regresso ao princípio esquecido: que cada pessoa, de Vladivostok a Lisboa, é soberana em sua dignidade inerente, e que as instituições existem para servir, não para dominar.

Que a Ucrânia seja novamente berço, não sepultura de uma geração sacrificada. Que o Ocidente recupere a memória de quando era farol e não aríete que arromba portas e muralhas.

Que o Oriente não repita os erros dos impérios que um dia condenou. Que todos reconheçam a humanidade comum que precede fronteiras, bandeiras, credos.

O jardim da humanidade é um só, embora cada canteiro tenha flores diferentes. É tempo de jardineiros que cultivem com amor, não de senhores que cerquem com arame farpado.

Pois enquanto houver quem veja no outro
não um inimigo, mas um filho da mesma terra,
haverá esperança de que a vã glória
não arraste toda a humanidade ao abismo.

E que as instituições, despertando da demência,
recordem que servem algo sagrado:
a vida, simplesmente a vida,
em toda a sua diversidade irredutível.

António da Cunha Duarte Justo
© Pegadas do Tempo

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Publicado por

António da Cunha Duarte Justo

Actividades jornalísticas em foque: análise social, ética, política e religiosa

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