A Minha Razão e a Razão dos outros – Duas complementaridades


Não chega a sabedoria vadia nem a lógica rimada

António Justo

“Duas coisas preenchem a mente com admiração sempre nova e crescente… o céu estrelado sobre nós e a lei moral em mim”, dizia Immanuel Kant. A mim duas coisas me assombram: a aerosfera sobre a terra e o tecto cultural de cada civilização; a atmosfera que cobre os diferentes biótopos da natureza e o sistema de pensamento que cobre os biótopos individuais e sociais. As mesmas leis meteorológicas que regem a natureza lá fora parecem soprar no nosso espírito cá dentro e nas culturas (ad intra et ad extra).

A natureza, a sociedade e a psiché humana atravessam uma fase de altas pressões. O desequilíbrio entre altas e baixas pressões é tal que os tsunamis parecem sacudir os fundamentos da sociedade e da moral. O nevoeiro generalizado chega a impedir de ver as estrelas e a diluir os contornos éticos, pondo em questão a sustentabilidade da humanidade e da terra.

Aqui fora, na minha terra, a atmosfera torna-se cada vez mais fria e rude; a tempestade, que nela grassa, varre jardins e telhados. Da borrasca ficam paisagens humanas devastadas e sentem-se os ecos de brados de gaivotas no ar. Uma natureza humilhada chora nas plantas e nos animais por o saber humano não respeitar o saber da natureza. Por todo o lado se observam ventanias e razias no meio ambiental e no meio cultural. O mesmo se diga no foro social e individual. Natureza e cultura ao desafia, o Homem contra o Homem.

A crise de identidade, com as crises dela resultantes, abala a pessoa e as instituições. Os ventos que correm na razão e no coração são stressantes. Na sociedade muitos afirmam-se pela negação do outro, outros pela acomodação. Por isso cada vez surgem mais árias para embalar o sentimento e para adormecer a razão. Tudo é belo, as sereias cantam e encantam. Cada um puxa ao rubro as cordas da razão ou do sentimento para fazer ouvir a sua composição.

Com esta minha composição não quero embalar mas tentar acordar para a mensagem de Ulisses ao passar pela ilha das sereias. Como na composição as desafinações têm o seu sentido também o desacordo compreensivo tem o seu lugar! A dissonância torna possível a harmonia. Não poderíamos falar do dia se não conhecêssemos a noite. A realidade ultrapassa porém a visão que advém do contraste.

Na praça pública, encontram-se demasiados textos feitos de frases soltas em bemol e de sabedoria vadia com lógica rimada ao sabor do anónimo dirigente ou textos beligerantes que só conhecem a própria razão. Dum lado o grupo dos afinados acomodados e do outros o grupo dos desafinados que tomam o semelhante como adversário. Neste grupo cada um quer, à margem da orquestra, tocar o seu instrumento sem diapasão, sem conferir a afinação. Cada um afirma-se naquilo que parece opor-se a ele. As desafinações são salutares se nos levarem a reconhecer o valor da harmonia, uma harmonia que comporta desafinações na afinação. Mal da sociedade quando cada um quer assumir o papel de diapasão. No mercado das ideologias e das opiniões assiste-se a uma grande desafinação. Cada um quer ter razão à custa da razão do outro.

Aqui a natureza pode vir em ajuda da cultura. A Natureza tem as mais variadas sementes, cada qual, com uma expressão de vida característica. A semente é formada pela casca tendo dentro dela o tecido de nutrição e o embrião. Também a sociedade/ cultura tem as mais diferentes sementes: filosofia, religião, ciência, arte, economia, política, ideologia, opinião. Cada uma destas tem a sua correspondente casca constituída por leis, dogmas, concepções. Estas (cascas) encerram dentro delas uma determinada vida (embrião). O mais importante não é a casca mas a vida que estas encerram. Enquanto na natureza (botânica) as cascas que envolvem o embrião (a vida), se amaciam e abrem para darem oportunidade à vida do embrião grelar e dar oportunidade à vida, na sociedade as sementes fixadas na casca lutam umas contra as outras. As pessoas (ideologias ou concepções) fixam-se naquilo que as delimita, a casca; naquilo que circunscreve o objecto do seu discurso/combate à casca; não fazendo sequer ideia do que esta encobre, comportam-se como se só elas tivessem direito à razão, à vida. Assim, para os que apenas têm a consciência do seu ser casca, só resta a estratégia da auto-afirmação pela negação dos outros. Então levantam-se os dogmáticos da religião (os fixos na casca da religião mas que não percebem nada de religião) contra os dogmáticos da ciência (os fixados na casca da ciência mas não percebem nada da essência da ciência), e vice-versa; o mesmo se dá nas diferentes nominações com as respectivas lutas entre grupos/casca. A casca da opinião talvez seja a mais dura delas todas porque muitas vezes não passa de uma casca formada doutras cascas, à margem da própria vida (identidade) e da mesma vida que flui ao mesmo tempo dentro da própria casca e dentro das cascas dos outros.

Olhai as sementes das plantas na natureza. Umas têm a casca mais dura que as outras, umas são maiores, outras mais pequenas. Em todas elas corre a seiva da vida sem se negarem umas às outras. Seguem um chamamento comum pressentido por todas; crescem em direcção ao Sol, apoiadas pela vontade. O ser humano, pelo contrário, encrusta a verdade/vida na delimitação (casca) da sua subcultura/opinião. Em vez de reconhecer a vida que se encontra dentro da demarcação (casca) afirma a sua casca contra a do outro e vice-versa. O ser humano ao não se tornar consciente da mesma vida que corre nele e nos outros fixa-se na carapaça do pensamento transformando-o em escudo, em casca contra a outra casca.

Ao não ouvir o chamamento da natureza, fixa-se em si mesma, como sendo um absoluto pedra,  desprezando o fluxo da vida para se fixar na maior ou menor consistência (fragilidade) das cascas, prescindindo da vida e do espírito que cada casca encobre para assim a poder negar. Na natureza temos as diferentes sementes/plantas (os diferentes biótopos/ecossistemas) que com as suas potencialidades vitais formam a riqueza da cobertura vegetal terrena. Na cultura temos diversos biótopos/ecossistemas culturais científico-filosófico-religiosos, cada qual com as suas configurações (cascas) que formam a cobertura cultural da humanidade. Cada sistema, do mais complexo ao mais simples (da civilização à opinião) tem a sua crusta (casca) que encobre a vida. Geralmente, no reino da opinião e do debate, limitamo-nos a abordar a crusta, refutando-a sem reconhecer a vida que se encontra escondida em cada uma, confundindo a semente com a casca. No fundo a vida que a tua crusta esconde é a mesma que flui debaixo da minha. É verdade que a casca (as concepções, os dogmas, as leis, os programas) tem a função de defender a vida que comportam contra a dissecação e contra energúmenos ou outros microorganismos. As cascas, religiosa, científica, familiar, nacional, ideológica, opiniosa, têm o seu direito e justificação. Encontram-se porém, como organismos, em serviço dum bem maior dentro dum macro organismo. Só o rompimento da casca permite o crescimento do embrião/vida para o exterior. A disseminação dos frutos e das sementes têm a função de preservarem a espécie e de se desenvolverem. A missionação com a sua potencialidade de inculturação e aculturação possibilitam a evolução não só da espécie como de toda a sociedade. A afirmação de uma não pode acontecer à custa da negação da outra, mas no respeito, no respeito da abertura voltada para o Sol. Como na natureza assim na sociedade/cultura: nada há igual, tudo é diferente e da diferenciação surge o desenvolvimento, a evolução. A própria liberdade tem um sentido, o sentido do Sol. Se na natureza se observasse o que se observa especialmente hoje no discurso cultural ainda não teríamos passado da verdade da anémona, da verdade peixe, da verdade hominídea ou da verdade gorila, da verdade emocional, da verdade racional: verdades encrustadas num sistema (verdades casca). Com isto não se relativiza a importância das cascas, sem elas não haveria individuação nem diferenciação, não haveria evolução, desenvolvimento material e  espiritual. Importante será descobrir a vida que cada casca encerra e verificar, sem combater nem negar, a vida que se encontra em cada semente, dentro de cada casca com as potencialidades do seu embrião. Umas serão mais carvalho, outras, mais oliveira, mais toupeira ou mais leão.

O verde de todas as plantas, aparentemente mais ou menos relevantes, transporta o oxigénio da atmosfera de que todas se aproveitam. Semelhante deveria dar-se nas culturas (ecossistemas culturais) com os seus diferentes credos (religiosos ou seculares). A esperança vital da humanidade que se encontra sob o firmamento cultural e embrionada nos diversos ecossistemas culturais também não pode ser estancada em nome duma crusta comum.

Os diversos credos, religiosos (feminidade) ou seculares (masculinidade), são imprescindíveis para o tecto metafísico cultural tal como o verde para a atmosfera que respiramos. A verdura transportada pelo conjunto da cobertura vegetal é expressão do esforço comum das diferentes individualidades vegetais. A atmosfera não precisa só do oxigénio mas também do dióxido de carbono, embora este seja mais notório pelas suas qualidades negativas!

”Oh culpa feliz” reconhecia o apóstolo Paulo. A culpa é a casca da semente, a vida encrustada que possibilita, doutro modo, o fluir da vida profunda e activa. Sem o pecado não há relação. Ele separa para possibilitar a religação consciente. A nós compete a missão de desfazer os nós que a motricidade da vida produz com o seu desgaste próprio. Cada um de nós “crente” ou “não crente” contribui com o seu credo, com a sua opinião para o tecto espiritual da cultura. Como na natureza, não há nada igual. Da diferença aparentemente contraditória surge a riqueza individual e cultural que contribui para o concerto universal de natura e cultura. Cada um traz consigo os seus ferimentos e estes fazem a diferença. Porque nos afirmamos uns contra os outros negando ao outro a sua razão em vez de nos reconhecermos como complementares duma Realidade maior? Na realidade andamos todos à procura de nós mesmos (do brilho da nossa divindade), à procura da própria casca para nos podermos agarrar; uns procuram-se no teatro, outros na religião, na arte, na ciência, na política, na palavra, na afirmação, na contradição, esquecendo talvez que tudo isto não são mais que as cascas que encobrem o nosso verdadeiro ser: vida em germinação. Cada um traz em si o espartilho do seu biótopo, estando predestinado a confundi-lo com a natureza toda, com a verdade…


António da Cunha Duarte Justo

antoniocunhajusto@googlemail.com

www.antonio-justo.eu

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Publicado por

António da Cunha Duarte Justo

Actividades jornalísticas em foque: análise social, ética, política e religiosa

Um comentário em “A Minha Razão e a Razão dos outros – Duas complementaridades”

  1. Simplesmente excelente meu caro Prof. António Justo. E está tudo dito.

    Apenas ouso referir a falta de humildade que todos temos, desde logo na dificuldade em saber ouvir os outros…

    Um grande abraço.

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